terça-feira, 14 de agosto de 2018

Mata um homem e come


Da série
Mais 47 cenas do romance familiar


Menino bem pequeno, duas falas de minha mãe soavam-me incompreensíveis, enigmáticas mesmo, não faziam qualquer sentido, com a agravante de que eu não dispunha do vocabulário de hoje para enfrentá-las, o que me causava indiscutível angústia e irritação maior ainda. O que será que ela quer dizer com isso, perguntava-se o menino pequeno.
            – Mãe, tô com fome.
            – Mata um homem e come!
            Como assim, mata um homem e come? Se eu repetia Tô com fome, lá vinha ela com a mesma absurda resposta. Já podia compreender que a ordem não era para ser obedecida literalmente. Então, o quê?
            Hoje eu sei, era apenas uma rima.
            A segunda fala, não menos misteriosa, causava-me ainda maior irritação, pois trazia um quê de obscenidade, o que era imperdoável, vinda de minha mãe. Quando o menino pequeno era contrariado em sua vontade de reizinho, reagia com ostensiva raiva, inconformado. Ao que a mãe retrucava:
            – Tá com raiva? Tira a cueca e pisa em cima.
            Não me lembro se naquele tempo eu já usava cuecas – palavra carregada de sensualidade! –, mas como seria possível que minha raiva passasse ao pisar numa cueca? A raiva escoaria pelo chão qual raio vindo do céu em dia de tempestade? 
            Incrível mesmo era o efeito de tais palavras: de início a raiva aumentava, para em seguida diminuir, até desaparecer. A mãe não conhecia a expressão, mas já sabia como “desmoralizar o sintoma”.
            

2 comentários:

  1. Adorei, André! Minha mãe também falava coisas assim! :)

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  2. Se bem me lembro, a frase inteira era: “Vai ‘na’ rua, mata um homem e come.”

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