quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Suzete e o soco no estômago

Querido André,


conversava eu com uma colega de trabalho no salão de beleza, falava mais do que conversava, falava falava falava afobada, a cabeça fervilhando, turbilhão de preocupações, a sensação de que eu não daria conta, mesmo sem saber bem do que não daria conta. Como se diz aqui no interior, eu estava sofrendo de sistema nervoso.
            Matilde me ouvia com paciência e atenção. Às tantas, me interrompeu e disse:
            – Olha aqui Suzete, nessa vida só há uma urgência incontornável: a caganeira.
            André, quase me urinei de tanto rir!
(Esta cartinha está me saindo escatológica. Às vezes encontro uma palavra que me impressiona muito, como “escatologia”; anoto a palavra no caderninho que carrego sempre comigo; aí vou ao dicionário, aprendo o significado, ou significados; escatologia também trata das teorias ligadas ao fim do mundo!; e fico esperando o momento para empregá-la; quando aparece, não posso perder a chance. Ler e escrever estão misturados para mim. De repente, leio escrevendo. Pode isso? Quem lê, ama as palavras. Quem escreve é louco pelas palavras. Minhas teorias.)
            Passado um bom tempo, sabe que aquilo nunca mais saiu da minha cabeça? Me ajudou mesmo. Engraçado isso, a arte de escolher a palavra certa para ser dita num determinado momento, a palavra que assusta quem a ouve, mas que faça sentido para ela. Pode ser até um soco no estômago, mas precisa fazer sentido para quem o recebe. Uma arte.
            Agora, André, você que é psicanalista, me diga quando e como vamos saber se uma palavra fará sentido para o outro, se é a palavra certa? Nunca jamais em tempo algum! Eu penso. Nada-Nunquinha-Da-Silva sabemos do outro, mesmo que ele esteja próximo de nós. 
            Então, se queremos ajudar uma pessoa em dificuldade como aquela em que me encontrava, devemos arriscar a palavra in-certa, ou melhor permanecer em silêncio? Você me diga.
            A história não acaba aqui; anos depois reencontrei a colega, disse-lhe como eu era grata pela ajuda que me havia proporcionado, na época e para sempre. Admirada, Matilde riu e me surpreendeu mais uma vez:
            – Suzete, você não sabe que tirei aquilo de uma piada que ouvira na véspera. Conversavam um alemão, um inglês e um brasileiro, e o alemão perguntou qual era a coisa mais veloz do mundo? Ele mesmo respondeu que nada era mais rápido que o pensamento. Que nada, afirmou o inglês, a coisa mais rápida é a luz. Ao que o brasileiro arrematou: a coisa mais rápida do mundo é a caganeira; quando chega, não dá tempo de pensar nem de acender a luz. Quase mijei de tanto rir, Suzete.
            Esta segunda parte da história também me deu muito o que pensar. Que sensibilidade da Matilde, aproveitar-se de uma piada para encontrar a palavra certa, o tal soco no estômago, que, se bem assimilado, servirá para a vida toda. Como serviu.
            Você há de se perguntar de onde uma reles cabeleireira tira essas coisas todas? E como ela aprendeu a escrever assim até que direitinho? 
São três as fontes, André, permanentemente à nossa disposição (pena que a maioria das pessoas não descubra isso): a conversa, a leitura e os dicionários. É difícil, mas precisamos aprender a conversar. No começo da cartinha eu contava que falava falava falava com Matilde, mas desde então eu já sabia que aquilo não era conversa. Precisamos também adquirir o hábito da leitura, escolher bons livros – recorro sempre ao Loucoporcachorros! –, nada de autoajuda, nada de facilidades. É importante aprender a ler nas entrelinhas, do mesmo modo que podemos ouvir as entrelinhas em uma conversa. Ah!, e tem os dicionários, né!
            Êta cabeleireira metida a besta! 
            Tudo isso era só pretexto para lhe escrever, querido amigo. Espero resposta em breve.



Da sempre sua, 
                                                Suzete.
            
            

Um comentário:

  1. Suzete séria, filosófica, psicanalista! Um lado novo da genial cabeleireira.
    E como ela escreve direitinho!

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