terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Pretérito imperfeito



            O livro de B. Kucinski, Pretérito imperfeito (Companhia da Letras, 2017), é um soco na boca do estômago do leitor, daqueles que iniciada a leitura você não consegue interrompê-la.
            Bernardo Kucinski, jornalista, professor aposentado da USP, é figurinha carimbada nesse blog. Apareceu aqui pela primeira vez com o livro K: relato de uma busca. Depois vieram Os visitantes, Você vai voltar para mim, Alice, e agora esse Pretérito imperfeito.
            O livro mistura três ingredientes explosivos: adoção, adição às drogas e racismo: o leitor pode imaginar onde isso vai parar?
            Tudo começa com a adoção, um casal sem filhos que deseja intensamente um bebê, segundo o autor, “adoção à brasileira”. Surgem os problemas de saúde de um recém-nascido. A criança cresce, torna-se um adolescente problemático. O pai chega a pensar que seria preferível a morte dele, do filho adotivo.
            Até tornar-se um adulto, o sofrimento de todos eles é descrito por Kucinski em detalhes, com a dureza kafkiana, e com o brilhantismo literário de sempre.
            Na tentativa compreender o que se passa com o filho, o autor busca na literatura auxílio de especialistas como Bion, Freud, Dan Kiley, Piaget, de poetas como Baudelaire, religiosos como Alan Kardec. Vejamos um exemplo, baseado em bebês que conhecem desde cedo apenas a mamadeira:

“E me espantei com implicações da fraude tão singela. Uma delas – a que mais me surpreendeu – foi apontada pelo psicólogo inglês Wilfred Bion, para quem a busca do seio materno pelo recém-nascido é mais que seu primeiro impulso vital, é também seu primeiro exercício intelectual. E por quê? Porque pensar, para Bion, é processar uma ideia preexistente. O bebê pensa o seio antes de buscá-lo. Mas pensa um mamilo túrgido e leitoso, não um bico de plástico. A fraude é também intelectual. Wilfred Bion acredita que, se o bebê não superar a frustração do falso conceito, sua capacidade de processar pensamentos poderá ficar para sempre fragilizada por uma tendência à fuga do real. É uma tese espantosa!”

            Estre trecho chega a emocionar; costumo resumir este adorável conceito bioniano com as seguintes palavras: quando o bebê vira a cabecinha para mamar, o seio já lá está.

            Espetacular o livro de B. Kucinski. Hoje, é um autor consagrado.

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