segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Faltou classe


            Desde o bate-boca entre o escritor Raduan Nassar e o Ministro da Educação Roberto Freire, por ocasião da entrega do Prêmio Camões de Literatura, o mais importante da língua portuguesa, que a mídia martela em cima de duas interpretações distintas e opostas sobre o ocorrido, ambas com fortes conotações políticas.
            Em resumo, uma corrente de opinião critica o ministro que, segundo aqueles que são contrários ao governo, devia ter ficado calado, pois o dono da festa era o escritor. A outra corrente defende a tese de que “quem fala o que quer, ouve o que não quer”.
            São duas correntes irreconciliáveis, o que exprime bem o nefasto racha em que se encontra o país. A explicação para tal fenômeno é mais simples do que parece, e o fato que encabeça esta crônica é um bom exemplo disso. Tomada uma posição, fincado o pé num determinado ponto de vista, estabelecida a convicção de que se está com a verdade, então não é preciso mais pensar – e pensar dá sempre muito trabalho.
            Diante desse fato, este blogueiro apresenta uma terceira posição, para a consideração daqueles que ainda são capazes de pensar: faltou classe a ambos os protagonistas, ministro e escritor.
            Eles ainda não aprenderam que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Simples assim. Em cerimônia de tal relevância para a cultura e literatura nacionais, o escritor agradece, tece comentários sobre sua obra, fala alguma coisa interessante sobre sua vida pessoal, e pronto. O ministro enaltece as virtudes literárias e pessoais do escritor, fala do valor do prêmio em questão, floreia mais um pouco, e pronto. As diferenças são deixadas de lado, em prol da festa, porque o momento é de festa.
            Não foi isso que aconteceu. A palavra classe implica em ter compostura, elegância, senso comum, educação, finesse, elevação de espírito, respeito pelo outro, o cultivo de um certo tipo de beleza. Faltou classe, sobraram orgulho, vaidade, preconceito.
            Lembro-me de José Saramago, comunista declarado e de carteirinha até a morte, anticlerical ao extremo. Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura na Suécia, proferiu belíssimo discurso, que tem início com a seguinte frase:

“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.”

            Ele favava do avô português, com quem aprendeu a ser um homem. (Diferentemente dos protagonistas de que trata esta crônica, orgulhosos da condição de intelectuais, e que por isso pensam que podem falar o que bem quiserem a qualquer momento, Saramago inicia enaltecendo um analfabeto, porém um homem sábio.) Relatou as dificuldades materiais da infância, a despeito da enorme afetividade reinante na família. Resumiu no discurso seus principais livros, destacando as injustiças as sociais, a precariedade do ser humano, tudo através da atuação de seus personagens, com seu maravilhoso e inconfundível estilo. E assim concluiu sua fala:

“O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se Todos os Nomes. Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos.
Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.”

Posso dizer ao escritor e ao ministro: estão cegos!
Mesmo demonstrando posições políticas extremadas, Saramago não perde a classe, sabe muito bem onde se encontra e qual o contexto que vivencia ao receber o prêmio dos prêmios.
Em Trópicos utópicos (Companhia das Letras, 2016), Eduardo Giannetti, cita uma passagem interessante, que talvez servisse ao nosso ministro:

“Quando Mahatma Gandhi desembarcou no porto de Southampton, no sul da Inglaterra, em 1931, a fim de participar de uma conferência sobre o futuro da Índia, um jornalista teria perguntado a ele: “O que o senhor acha da civilização ocidental?” E o líder indiano responde: “Acho que seria uma boa ideia.”

            Isso é classe! Inteligência, fina ironia, presença de espírito, diante de uma situação adversa, na qual o vaidoso arrogante tentava humilhar o homem sábio.
            Faltou sabedoria ao escritor e ao ministro. Faltou a eles muita coisa. E estamos a falar da “elite” do país, pobre país.
            Em tempo, ciente que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, não posso deixar de registrar que Lavoura arcaica, de Nassar, é um dos mais belos livros da língua portuguesa!



Um comentário:

  1. De fato. Pura falta de compostura, além de desrespeito com o público, que provavelmente não estava nem um pouco interessado no entrevero. Como diz a minha filha ao meu neto, quando ele faz alguma coisa errada: "Feiúra"!

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