Desde o bate-boca entre o escritor Raduan Nassar e o Ministro da
Educação Roberto Freire, por ocasião da entrega do Prêmio Camões de Literatura,
o mais importante da língua portuguesa, que a mídia martela em cima de duas
interpretações distintas e opostas sobre o ocorrido, ambas com fortes
conotações políticas.
Em resumo, uma corrente
de opinião critica o ministro que, segundo aqueles que são contrários ao governo,
devia ter ficado calado, pois o dono da festa era o escritor. A outra corrente
defende a tese de que “quem fala o que quer, ouve o que não quer”.
São duas correntes
irreconciliáveis, o que exprime bem o nefasto racha em que se encontra o país.
A explicação para tal fenômeno é mais simples do que parece, e o fato que
encabeça esta crônica é um bom exemplo disso. Tomada uma posição, fincado o pé
num determinado ponto de vista, estabelecida a convicção de que se está com a
verdade, então não é preciso mais pensar
– e pensar dá sempre muito trabalho.
Diante desse fato, este
blogueiro apresenta uma terceira posição, para a consideração daqueles que
ainda são capazes de pensar: faltou
classe a ambos os protagonistas, ministro e escritor.
Eles ainda não aprenderam
que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Simples assim. Em cerimônia
de tal relevância para a cultura e literatura nacionais, o escritor agradece,
tece comentários sobre sua obra, fala alguma coisa interessante sobre sua vida
pessoal, e pronto. O ministro enaltece as virtudes literárias e pessoais do
escritor, fala do valor do prêmio em questão, floreia mais um pouco, e pronto. As
diferenças são deixadas de lado, em prol da festa, porque o momento é de festa.
Não foi isso que
aconteceu. A palavra classe implica
em ter compostura, elegância, senso comum, educação, finesse, elevação de espírito, respeito pelo outro, o cultivo de um
certo tipo de beleza. Faltou classe, sobraram orgulho, vaidade, preconceito.
Lembro-me de José
Saramago, comunista declarado e de carteirinha até a morte, anticlerical ao
extremo. Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura na Suécia, proferiu belíssimo
discurso, que tem início com a seguinte frase:
“O homem mais sábio
que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.”
Ele favava do avô
português, com quem aprendeu a ser um homem. (Diferentemente dos protagonistas
de que trata esta crônica, orgulhosos da condição de intelectuais, e que por isso
pensam que podem falar o que bem quiserem a qualquer momento, Saramago inicia
enaltecendo um analfabeto, porém um homem sábio.) Relatou as dificuldades
materiais da infância, a despeito da enorme afetividade reinante na família.
Resumiu no discurso seus principais livros, destacando as injustiças as sociais,
a precariedade do ser humano, tudo através da atuação de seus personagens, com seu
maravilhoso e inconfundível estilo. E assim concluiu sua fala:
“O aprendiz pensou:
"Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira
para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando
humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada
pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das
verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o
respeito que devia ao seu semelhante. Depois, aprendiz, como se tentasse
exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a
mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra
pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que
pedir a um ser humano. O livro chama-se Todos os Nomes. Não escritos, todos os
nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos.
Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco
das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz
que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é
tudo.”
Posso dizer ao escritor e ao ministro:
estão cegos!
Mesmo demonstrando posições políticas
extremadas, Saramago não perde a classe, sabe muito bem onde se encontra e qual
o contexto que vivencia ao receber o prêmio dos prêmios.
Em Trópicos
utópicos (Companhia das Letras, 2016), Eduardo Giannetti, cita uma passagem
interessante, que talvez servisse ao nosso ministro:
“Quando
Mahatma Gandhi desembarcou no porto de Southampton, no sul da Inglaterra, em
1931, a fim de participar de uma conferência sobre o futuro da Índia, um jornalista
teria perguntado a ele: “O que o senhor acha da civilização ocidental?” E o
líder indiano responde: “Acho que seria uma boa ideia.”
Isso
é classe! Inteligência, fina ironia, presença de espírito, diante de uma
situação adversa, na qual o vaidoso arrogante tentava humilhar o homem sábio.
Faltou
sabedoria ao escritor e ao ministro. Faltou a eles muita coisa. E estamos a
falar da “elite” do país, pobre país.
Em
tempo, ciente que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, não posso
deixar de registrar que Lavoura arcaica,
de Nassar, é um dos mais belos livros da língua portuguesa!
Discurso de José Saramago: http://bu.furb.br/sarauEletronico/index.php?option=com_content&task=view&id=191
De fato. Pura falta de compostura, além de desrespeito com o público, que provavelmente não estava nem um pouco interessado no entrevero. Como diz a minha filha ao meu neto, quando ele faz alguma coisa errada: "Feiúra"!
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