Há alguns anos li É isto um
homem?, de Primo Levi (Rocco, 1988), e o livro não me saiu mais da cabeça.
Tenho-o como um livro fundamental, relato da vida em Auschwitz, que há de
impressionar a todos aqueles que se interessam por certos aspectos da alma
humana.
Levi foi o primeiro a tornar públicos os acontecimentos ocorridos nos
campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial, dois ou três anos após seu
término, portanto ainda sob o traumático impacto da experiência vivida pelo
autor, um sobrevivente. O livro teve difusão mundial apenas após sua segunda
edição, em 1958, causando estrondosa repercussão.
Em É isto um homem?, na
tradução de Luigi del Re, impressiona a ausência de ódio e desejo de vingança
por parte de Primo Levi, a despeito de tanto sofrimento.
Quarenta anos depois, o mesmo Levi publica Os afogados e os sobreviventes, que só agora é traduzido no Brasil
(Luiz Sérgio Henriques, Paz & Terra, 2016). (Por que tão longo tempo para esta tradução?) O
distanciamento no tempo permitiu ao autor uma análise ainda mais equilibrada
sobre o ocorrido, mas não menos sofrida. Vejamos o que ele diz no prefácio:
“Por todos os motivos aqui expostos,
a verdade sobre os Lager [campos de
concentração] veio à luz através de um caminho longo e de uma porta estreita, e
muitos aspectos do universo concentracionário ainda não foram aprofundados. Já
transcorreram mais de quarenta anos desde a libertação dos Lager nazistas; este considerável intervalo suscitou, em termos de
esclarecimento, efeitos diferenciados, que buscarei arrolar.
Houve, em primeiro lugar, a
decantação, processo desejável e normal, graças ao qual os fatos históricos só
adquirem suas linhas e sua perspectiva alguns decênios após sua conclusão. No
fim da Segunda Guerra Mundial, os dados quantitativos sobre as deportações e sobre
os massacres nazistas, nos Lager e em
outros lugares, não estavam disponíveis, nem era fácil entender seu alcance e
sua especificidade. Somente há poucos anos se veio a compreender que o massacre
nazista foi tremendamente “exemplar” e que, se um outro pior não acontecer nos
próximos anos, ele será lembrado como o fato central, como a mancha deste
século.”
A mancha de um século não diz
respeito apenas a nazistas e judeus, diz respeito a toda humanidade.
O próprio Levi assinala em toda a
sua narrativa que o problema é complexo. Por isso sugiro ao leitor interessado
no assunto que leia também Hanna Arendt: Eichmann
em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. É outro livro
fundamental. Não que esta abordagem represente uma outra face da moeda, nada
disso; trata-se apenas de outra perspectiva de análise do complexo problema.
Até hoje há quem faça perguntas do
tipo Por que os judeus não fugiram?, Por que não se rebelaram? São questões de
difícil resposta, abordadas por Levi com a autoridade de quem vivenciou o
problema na carne.
O interessantíssimo penúltimo
capítulo de Os afogados faz referência
a cartas escritas por alemães a Primo Levi, depois que o É isto um homem? foi traduzido para o alemão e publicado na
Alemanha, para surpresa do autor. São depoimentos tocantes, verdadeiros
documentos de valor histórico inestimável, que muito acrescentam ao nosso
entendimento.
Um episódio da humanidade que não para de chocar e doer. O único modo de se lidar com ele é pensá-lo, e repensá-lo.
ResponderExcluirConcordo tio Paulo. A única forma de trabalhar a dor causada por essa mancha, como dia o Levi, é pensar o assunto. Pensar no que ocorreu. Tentar sentir um ínfimo do que ocorreu. Assim, agradeço o autor do Louco pela indicação dos livros.
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