As notas biográficas registradas por Ricardo Domeneck
sobre Orides Fontela são tão elegantes, tão suscintamente belas, que as
reproduzo integralmente neste blog.
“Orides Fontela nasceu em São
João da Boa Vista, interior de São Paulo. Mudou-se para a capital paulista para
estudar filosofia e publicou seu primeiro livro, chamado Transposição,
em 1969, seguido de outras quatro coletâneas de poemas, compiladas em 2006 no
volume Poesia Reunida 1969 - 1996, oito anos após a morte da poeta.
É costume descrever o temperamento de Orides Fontela em notas
biográficas como esta, além de certa lenda que já se fixou em torno de sua
biografia, para logo em seguida descartar esta mesma biografia em prol da
descrição de sua poesia "enxuta", "concisa",
"cristalina". Estes adjetivos fazem sentido em uma descrição da obra
da poeta, assim como em seus poemas a primeira pessoa do singular parece estar
consistentemente exilada dos verbos. A biografia de Orides Fontela importa
pouco para a avaliação formal de seu trabalho, mas eu tenho certeza que haveria
outra forma de pensar a conexão entre a obra e a vida do poeta. No caso de
Fontela, não estariam ligados, a pobreza física e material de Orides Fontela e
seu despojamento estilístico, o próprio desnudamento de sua poesia? Uma mulher
sem casa, sem amores, talvez pudesse realmente louvar apenas o oxigênio.
Pobreza, veja bem, de uma poeta que negou o adorno e embelezamento poético até
suas últimas consequências, e escreveu preferir, como trocas, "Um fruto
por um / ácido / um sol por um / sigilo / o oceano por um / núcleo // o espaço
por uma / fuga / a fuga por um / silêncio//- riquezas por uma / nudez."
Fala-se de neosimbolismo em sua poesia, por seu uso de
substantivos que nos convidam a vê-los como "símbolos", freqüentes em
sua poética, como "pássaros", "espelhos" e "rios"
circundando o mundo. Eles convidam a isto. Mas algo muito importante separa o
trabalho de Orides Fontela da poética dos neosimbolistas brasileiros, um dia
reunidos em torno da revista Festa, comandada por Tasso da Silveira, dos
quais hoje lemos apenas Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Pois seus
melhores poemas demonstram sua atenção linguística de poeta do pós-guerra, em
um momento histórico que exigia, de seus símbolos, a consciência de serem
signos, de uma poeta que compreendia nutrir sua simbologia pela linguagem, que
a filtrava.
Em Orides Fontela, o símbolo se faz signo, num movimento de mão dupla,
em fluxo e refluxo, como se a linguagem poética, em sua capacidade múltipla de
concretude e abstração, passasse a ter marés. Se Fontela está ligada por
temperamento a poetas como Cecília Meireles e, por sua vez, a Cruz e Sousa, seu
simbolismo "sígnico" faz Orides Fontela mais próxima, creio, da
Henriqueta Lisboa de um livro como Além da Imagem (1963); não a Henriqueta
Lisboa de A face lívida (1945) ou Flor da morte (1949), mas a
poeta consciente dos jogos e artifícios da linguagem e dos símbolos/signos, a
poeta que esta parece se tornar a partir da década de 50 (e que precisamos
voltar a ler), especialmente em livros como o já citado Além da imagem
ou no livro Reverberações (1976).
Sim, a lucidez alucina. Morta em um hospital público em
1998, sem família, indigente como uma poeta, exatos cem anos depois da morte de
Cruz e Sousa e o transporte de seu corpo para o Rio de Janeiro em um trem de
carga, num vagão para animais, estas duas datas (1898 - 1998) encerram, para mim,
o século XX da poesia brasileira.”
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