quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O doce e o salgado

Com o poético título Tinha uma pedra no meio do caminho, Leandro Karnal discorre de maneira brilhante sobre a leitura de livros fáceis e livros difíceis (Folha de S. Paulo, 14/12/2016). A erudição do autor e/ou a complexidade da narrativa fazem a diferença, diz ele. (A confissão de Karnal, de que abandonou pela metade a leitura de Finnegans Wake, do irlandês Joyce, é um alento para os que tentaram ler a obra e também desistiram...)
Assim expressa o colunista, sobre as diferenças entre um clássico e um best-seller:

“Tamanho, vocabulário, ideias, erudição, metáforas herméticas: tudo pode ser um obstáculo no enfrentamento de um clássico. Em oposição, um best-seller asfalta nosso caminho e o povoa de árvores e bancos para que o leitor não se canse na jornada. Palavras simples, enredo rápido e cheio de mudanças vibrantes, mistérios que se resolvem ao longo da obra e um doce canto da sereia da facilidade que deseja atrair nossa atenção.”

Por quê então trilhar o caminho mais difícil?, o próprio Karnal interroga. E responde: “Crescimento deriva do desafio. A dificuldade da grande obra é seu mérito.”
O chamado clássico faz o leitor pensar, digo eu; o best-seller exige apenas o acompanhamento da história, sem qualquer esforço mental. Me parece interessante a comparação entre um filme de peso e um filme da sessão-da-tarde. Quando assistimos a um bom filme, mesmo que não seja “agradável” aos nossos sentidos (O sétimo selo, O Poderoso Chefão I, II e III, Pulp Fiction, Blade Runner, Sindicato dos ladrões, Janela indiscreta, O filho de Saul, para citar alguns), temos o que conversar sobre ele, podemos discutir interpretações, propor alternativas, repensar nossos pontos de vista, isso tudo se dispomos de uma mente aberta. (Aquele que tudo sabe, o dono da verdade, nada discute.) Ao terminar a sessão de O Regresso, com Leonardo DiCaprio, só nos resta permanecer em silêncio, nada a comentar. É o best-seller cinematográfico.
Em recente conversa com meu interlocutor particular e permanente – até que a morte nos separe –, soube de seu espanto ao tomar conhecimento de que Paulo Coelho é o autor da língua portuguesa mais traduzido mundo afora, Mais de mil traduções, bradou ele, Muito mais traduzido que José Saramago!, Um verdadeiro fenômeno!, E como explicá-lo?
Trata-se do caminho asfaltado, como diz Karnal, além do que, recheado de misticismo, magia, sobrenatural, prato cheio para aqueles que ainda não se libertaram do pensamento mágico próprio da infância de todos nós (ou seja, grande parte da humanidade). Há outras explicações, é claro, especialmente ligadas ao marketing, mas penso que a do caminho asfaltado é a melhor delas.
Bion utilizou-se da expressão “expansão psíquica” para descrever o crescimento mental. A leitura atenta dos clássicos, ver e rever um bom filme, boas conversas sobre os livros, filmes, sobre a vida enfim, podem promover expansão psíquica, algo a ser perseguido ao longo de toda a nossa vida. Mas dá trabalho...





4 comentários:

  1. Ótima crônica André. É comum essa confusão e as pessoas se perguntarem "mas se gostei porque não é um clássico?". Com premiações a confusão só aumenta: "mas ganhou o Oscar..."

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  2. As premiações trazem ocultas outras intenções, Sergio. Ótima lembrança a sua intervenção.

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  3. Gostei muito do texto do Louco assim também como do original. Textos que nos faz pensar - expansão psíquica, gostei até da comparação com a musculação do Karnal, e especialmente a ideia de podermos estar achando que nossos dias atuais são "extraordinariamente novos"!!!

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  4. Ótimos textos! Não sei qual é o melhor, se o Karnal, se o Louco...
    O mundo da literatura é fascinante. E infelizmente, para além das classificações, há tanta gente que nada lê!

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