quarta-feira, 27 de abril de 2016

Cinema, a melhor diversão

Casados há 65 anos, os filhos crescidos, formados, 8 netos, 3 bisnetos, Augusto e Conceição levavam vidinha regrada, alimentação saudável, um copo de vinho no almoço, outro no jantar, às noites de sábado um cálice de vinho do Porto, ele com 90, ela com 89 anos, ambos com relativa saúde, tanto quanto é possível nessa idade.
As brigas e discussões da juventude já não existiam. Os dois padecendo de uma certa surdez, escutavam apenas o que lhes interessava, deixando de lado as discordâncias. Porém, uma forte concordância havia se tornado o elemento mais importante da vida do casal, que os unia fortemente, motivo de intermináveis e deliciosas conversas: ambos gostavam muito de cinema.
Dito assim, parece banal, nada demais gostar de cinema, todo mundo gosta de cinema, quem não gosta de cinema? Há quem prefira ver filmes pela televisão, outros colecionam DVDs, piratas ou não, há os que preferem ir ao cinema de verdade, fãs da tela grande, não importa o meio, mas ver um bom filme ainda é um bom programa, para todas as idades. (Os mais abastados esticam a noite com jantarzinho em um bom restaurante, regado a vinho no mínimo honesto.)
Augusto e Conceição viam filmes em casa, pela tv. Depois do jantar frugal, lá iam os dois para a sala de televisão. Os filmes eram escolhidos com antecedência, de modo que na hora marcada, entre 9 e 10 horas da noite, preparavam-se com certa excitação para o espetáculo, o aparelho no volume mais elevado.
Iniciado o filme, entrado em seu décimo minuto, fosse de ação, violência, suspense, terror ou filme de amor, como gostavam de dizer, Conceição ouvia o ressonar de Augusto, já em sono profundo. A mulher olhava para o marido com benevolência, sorria, voltava ao filme.
No dia seguinte, o diálogo ao café da manhã era sempre o mesmo:
– Gostou do filme, Conceição?
– Gostei muito!
– Então conta...
– A Coreia fora invadida pela China, o povoado da família Kim destruído pelo bombardeio chinês, e a população inteira teve que abandonar o país em navios americanos. No embarque tumultuado a menininha Liu caiu do ombro do irmão Jong e perdeu-se na multidão. Kim, o pai, voltou para procurá-la, o navio zarpou e também ele se perdeu. Antes, porém, Kim recomendou a Jong, menino de apenas 5 anos de idade, que cuidasse da mãe e do irmão mais novo; doravante, ele seria o chefe da família! A partir de então o menino abriu mão da própria vida em função da família. Foram morar em Seul, o irmão mais novo entrou para a universidade, Jong trabalhou para sustentar a todos, foi ganhar dinheiro nas minas de carvão na Alemanha, onde quase morreu vítima de desabamento, depois lutou na guerra do Vietnã, onde perdeu uma perna...
O café terminava, o casal sentava-se na varanda aberta para o belo jardim, e Conceição continuava o relato do filme. Como ela também cochilara durante a projeção, pulava trechos inteiros da história, inventava personagens, trocava nomes, misturava os filmes já vistos, acrescentava sempre um caso de amor em seu relato, e nem sempre o final coincidia com o mostrado no filme. Nada disso importava. Augusto prestava absoluta atenção, fazia perguntas, ria, emitia sons de genuíno espanto em alguma passagem mais interessante, embirrava com algum personagem do qual desgostava, deliciava-se com o relato da mulher. Ao término da conversa, o invariável comentário:
– Bom mesmo este filme! E hoje, o que teremos?
– Um filme italiano de amor.
Se um filho chegasse para visitar os pais, a primeira pergunta que fazia era:
– E aí, pai, como foi o filme de ontem?
– Ótimo! A história de uma família que se perdeu na Coreia.



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