quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Dissecando um microconto

Recebi do meu amigo e médico Dr. João Nunes – um médico que lê –, um primor de microconto, postado ontem neste Louco, com a devida autorização do autor, sob o título Adultério revelado. Um microconto basta por si mesmo, dispensa explicações ou comentários. Cabe ao leitor fazer o trabalho de multiplicar ideias a partir do texto curtíssimo.
Mas é tão bom o microconto do João Nunes que não resisto à tentação de pelo menos enumerar algumas possíveis conjecturas a partir do mesmo.
Reproduzo-o aqui:

Amor, não bata numa filha que não é sua.

            São apenas 40 toques! (O twitter permite 140 toques, e este critério tem sido empregado por muitos adeptos do microconto, incluindo este blogueiro.) Mas com apenas 30 por cento deste espaço, João conta uma história complexa, rica em possíveis desdobramentos, com introdução, desenvolvimento e conclusão. Conclusão? Bem, isso é uma outra história.
Apresento ao leitor meu exercício de especulações.

1 – “Amor”: a primeira palavra do conto introduz importante caráter da relação; a mulher é carinhosa, delicada, cuidadosa, amorosa, a despeito do fato que será enunciado em seguida;

2 – “amor, não bata”: o sentimento amoroso e o pedido subsequente aparentemente expressam sentimentos opostos, conflitantes, dramáticos; porém, parece que o pedido também é formulado de maneira delicada, mas firme, numa fala decisiva, de quem tem autoridade para fazê-lo; é praticamente uma ordem; a continuação da história há de explicar o caráter e a natureza desta autoridade; até aqui, temos a Introdução do conto;

3 – “não bata numa filha”: o elemento decisivo é introduzido na história: uma criança; o homem é portanto um espancador de crianças; ao menos desta vez, ele espanca, o que acrescenta dramaticidade à história;

4 – mas a mulher, mesmo assim, trata-o por “amor”; que relação é esta?; a mãe encontra-se dividida entre sua filha e seu homem?; é completamente dominada pelo companheiro?; este o Desenvolvimento da história;

5 – até que ela resolve utilizar-se da referida autoridade: “numa filha que não é sua”. A frase é um verdadeiro soco no estômago! Do homem e do leitor! A revelação é feita de modo ainda delicado, pela economia de palavras, mas ao mesmo tempo violento, também pela economia de palavras;

6 – o adultério é revelado da maneira mais direta possível, não deixa dúvida sobre a paternidade da criança: a criança não é filha do espancador;

7 – o que fará agora o homem violento, passado o susto da súbita revelação? Haverá de espancar a própria mulher, que o trata com “amor”?;

8 – e se o homem já tinha conhecimento prévio do adultério, de que ele não era de fato o pai da menina? Talvez aquele não tivesse sido o primeiro episódio de agressão física; estaria a mãe “acostumada” já com tal violência, contra a criança e até mesmo contra si própria? Não é raro, por razões as mais diversas, que mulheres “aceitem” tal tipo de tratamento, impotentes, paralisadas, diante de situações para as quais não têm coragem ou recursos emocionais para enfrentar;

9 – e se não houve adultério? A criança poderia ser fruto de relacionamento anterior; então o tratamento “amor” talvez se justifique; a mãe reconhece o ciúme que a criança desperta no homem dela, e ciúme é ciúme!;

10 – esta última possibilidade agora parece-me bastante plausível, mas não foi a primeira que me ocorreu; por quê?; o que terá ocorrido ao leitor logo após uma primeira e rápida leitura? O título dado ao microconto induz o leitor a uma certa conclusão; talvez o título pudesse ser menos explícito, ou até mesmo fosse dispensável: Sem título; estamos falando da Conclusão do conto;

11 – esta a essência do microconto: o que o leitor introduz de seu, na história apenas esboçada, e a conclusão, portanto, depende do leitor, isso quando há conclusão possível; caso não haja conclusão, que o leitor se vire com seu desejo de controle sobre tudo e todos...

            Outras tantas possibilidades e desdobramentos poderiam ser aventados. Deixo a tarefa ao leitor amigo, caso tenha paciência e apreciado o exercício aqui exposto.

            Parabéns ao Dr. João Nunes, um médico que lê e escreve.

3 comentários:

  1. Não é um conto, é um romance. Puxado a Nelson Rodrigues.

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  2. "que o leitor se vire com seu desejo de controle sobre tudo e todos..." Ótimo conselho!!

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