Bronze de Jaroslav Róna, em Praga.
Sonhos, de Franz Kafka, é um livrinho
precioso. Editado no Brasil pela Iluminuras nos idos de 2003, com tradução de
Ricardo F. Henrique e prefácio de Luis Gusmán, parece não haver um
correspondente original do autor tcheco, publicado em vida ou mesmo após sua
morte (1883-1924). A editora informa que a seleção efetuada por Gusmán partiu
das obras Träume (Fischer Taschenbuch
Verlag, 1993) e Obra completa (S.
Fischer Verlag, 1992). Importa que ganhamos um presente.
Afirma Márcio Seligmann-Silva, já na
orelha do livro:
“O
arado que corta, neste autor, tanto sua vida de escritor como seu sono,
confunde uma fronteira com a outra. Se para ele ‘nem o sono nem o despertar’
são ‘verdadeiros’, é porque ao invés de ‘dormir’ ele está constantemente
povoado por sonhos: ‘só sono nada de sonhos’, ele anota em seus diários (melhor
dizendo: noitários!). O ‘material
resistente’ dos sonhos, sua supernitidez (e realidade), não o impede de
“dormir”, mas também rompia os limites entre a noite e o dia, o corpóreo e o
simbólico.”
Acho melhor chamá-lo de Literatura em estado bruto,
onde sonho e vigília confundem-se o tempo todo, como assinala Kafka em uma de
suas frases típicas:
“Até adormeço, mas ao
mesmo tempo sonhos fortes me mantêm acordado”.
O livro é composto por relatos dos Diários, cartas a
Max, Otto Brod, Felice Brauer, a seu chefe de repartição, diários de viagem,
fragmentos de cadernos e folhas soltas, com ou sem data.
Freud já havia chamado a atenção, no magistral Interpretação dos Sonhos (1900), para a impossibilidade
de uma reprodução ou registro exatos do sonho, que acaba sendo “modificado” por
interferência do plano consciente. Kafka, que se manteve afastado da
Psicanálise durante toda a vida, não se importava com isso, e precisava contar seus sonhos e
não-sonhos, no seu incessante exercício de literatura, a única coisa de real
valor para ele.
Gusmán destaca quatro gêneros de relatos no mundo
onírico de Kafka. Primeiro, o da insônia,
“na estreitíssima faixa do despertar e que está ligado ao ato de escrever”.
Depois, a sonolência que resulta da
insônia. Segue-se o devaneio,
“pequenos relatos alucinados onde, no entressonho, a imagem é vista e sentida
no corpo”. E termina pela necessidade de
relatar o sonho, além de sonhá-lo, o que chamei de incansável exercício de
literatura.
Em dezembro de 1911, nos Diários, Kafka anota outra
frase característica:
“Escrever uma
autobiografia me daria grande prazer, pois seria tão fácil quanto anotar
sonhos”.
Portanto, para ele, sonho é vida, significa viver,
desperto ou ao dormir.
Às vezes o sonho parece-se com um conto, como este
registrado em maio de 1913:
“A imagem contínua de
uma fatiadora muito larga que me vai cortando em alta velocidade e com
regularidade mecânica em fatias muito fininhas que saem voando quase enroladas
por causa da rapidez do trabalho.” (Trata-se de um esboço para A Colônia
Penal?)
O último “sonho” selecionado por Gusmán sintetiza a
filosofia do livro, tem caráter poético, é uma pérola rara e foi retirado de
fragmentos de cadernos e folhas soltas, sem data:
“Envolve a criança
nas dobras do teu manto, sonho sublime.”
Eis Franz Kafka em toda sua genialidade e plenitude!
***
O Louco, longe de ser
pretencioso, inspirado nos Sonhos, de
Kafka, a partir de agora inaugura a postagem Sonhos à moda de Kafka, relatos minimalistas sonhados e não
sonhados, simples exercícios de escrever. Vejamos o resultado.