domingo, 22 de novembro de 2015

Um livro puxa outro


             Acontece com quem ama a Literatura: do mesmo modo que um assunto puxa outro, quem conta um conto aumenta um ponto, um livro puxa outro. Talvez seja isso, e mais um bocado de teoria, que os entendidos chamam de Literatura Comparada.
            Em excelente crônica no suplemento Eu & Fim de Semana, do Valor Econômico (13/11), a competentíssima Eliana Cardoso, economista, escritora, especialista em Literatura Comparada, rendeu homenagem aos 100 anos de A Metamorfose, de Kafka.
            Depois de brilhar com a própria análise do livro, Eliana cita Nabokov, que compara o texto de Kafka a dois outros, o romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e o conto O capote, de Nikolai Gógol. Nabokov coloca o romance de Stevenson um degrau abaixo das duas outras obras, porque “...lhe falta unidade entre o personagem central e o cenário que o cerca”.
            Como não havia lido o conto de Gógol (a santa ignorância de sempre!), corri atrás da ótima publicação da Editora 34, O capote e outras histórias (2011, 2a edição), com primorosa tradução de Paulo Bezerra.
            O conto é mesmo ótimo! Mas como um livro puxa outro, ao término da leitura, o que me veio à mente, eu que nada entendo de Literatura Comparada, não foram Kafka e Stevenson. Quem me apareceu subitamente e sem aviso prévio foi o Fantasma, pai de Hamlet, que abre a tragédia de Shakespeare!
            Em meu fraco ponto de vista, o mesmo recurso utilizado por Shakespeare para introduzir a trama hamletiana foi utilizado por Gógol para finalizar seu conto: a intervenção de um Fantasma.
            Em ambos os textos os fantasmas são reais, muito reais. O de Shakespeare apareceu primeiro a Marcelo, Bernardo e Horácio (para não deixar dúvida quanto a sua existência, e não apenas uma alucinação de Hamlet, sabidamente não muito bom da cuca), companheiros de Hamlet, e em seguida a ele próprio, com quem conversou longamente (na bela tradução de Bárbara Heliodora, Teatro completo, Ed. Nova Aguilar, 2009):

Fantasma:

“Sou o espectro de teu pai;
Condenado a vagar durante a noite,
Preso ao fogo, até que este consuma
E purifique as faltas criminosas
Que cometi em vida. Mas proibido
De contar os segredos de meu cárcere,
Pois se os narrasse, a mínima palavra
Cortaria tu’alma e gelaria
O próprio sangue jovem do teu corpo;
Faria teus dois olhos, como estrelas,
Saltar das órbitas, e os teus cabelos
Eriçarem-se rijos, como as cerdas
Se eriçam no irritado porco-espinho.
Aos ouvidos humanos. Ouve! Escuta!
Ouve! Se amaste um dia um pai querido...”

Hamlet:

“Oh, Deus!”

Fantasma:

“Vinga a sua alma e o seu assassinato!”

            O Fantasma de Gógol apareceu a uma cidade inteira! Diante de um personagem que o autor chama ironicamente de “figurão”, eis a cena:

“Mas o pavor do nosso figurão ultrapassou todos os limites quando viu o morto entortar a boca e, exalando pavorosamente sobre ele o cheiro de sepultura, pronunciar essas palavras:

– Ah! até que enfim! Até que enfim vou te... aquilo... te agarrei pela gola! É do teu capote mesmo que estou precisando! Não intercedeste para encontrar o meu e ainda me repreendeste – então agora me dá o teu!

O pobre figurão por pouco não morreu.”

            Nada mais real que um bafo de fantasma, bafo de sepultura!
Pois é assim que um livro puxa outro, que puxa outro (o bafo do Fantasma de Gógol lembrou-me o bafo de cebola do delegado, em O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, Companhia das Letras, 1988), até voltar ao primeiro livro, no caso em questão, A Metamorfose.
            Nabokov, ainda segundo Eliana Cardoso, afirma com inteira propriedade:

“Gregor é um ser humano em disfarce de inseto; sua família é composta de insetos disfarçados de seres humanos.”

            Viva a Literatura!


4 comentários:

  1. A distinta literata esqueceu de uma obra indubitavelmente kafkiana que é "Bartleby, o Escrevente", escrita nos idos de 1853 por Herman Melville. Na minha modesta opinião, esse conto supera tanto a obra de Gogol quanto a de Stevenson. Vale lembrar que o falastrão Vladimir Nabokov, crítico no qual a literata se apoia, considerava Dostoiévski um escritor medíocre.

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  2. Ah! Esqueci! Se o sr. ainda não leu "Bartleby, o Escrevente", então pára tudo!!!! rsrsrs

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    1. Já li Bartleby, numa estranha edição da CosacNaify! Vou comentar oportunamente. Desde já, obrigado pela erudita observação.

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