quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Ainda sobre a conversa


Francisco Daudt publicou hoje (14/10) excelente artigo na Folha, intitulado Começo de conversa (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/236372-comeco-de-conversa.shtml), com início provocador:

“Você mataria sua mãe a facadas? Não? Nem eu! Então já temos alguma coisa em comum, é um começo de conversa." Essa era a anedota que meu tio Marcello contava para dizer que, quando a divergência com alguém era grande, fazia-se necessário buscar fundações comuns para a construção do edifício do entendimento.”

            Daudt prossegue:

“Arno Viero, doutor em filosofia da lógica (a coisa mais complicada que já vi), me dizia: "Se você não partilha axiomas, não converse". Axiomas são verdades auto-evidentes, que não precisam de demonstração. "Se você esgrima floretes, não vá duelar com um moleque, pois ele vai te tacar uma pedra na cara."
Mas qual é a aplicação prática do conselho do Arno? É evitar um atrito que produza mais calor do que luz. Claro, isso se você estiver interessado na luz; há gente que se interessa mais pelo embate em si, por derrotar o outro na discussão, por se mostrar por cima, por humilhar sadicamente, por fazer o outro se sentir um merda.”

            De certo modo, Daudt radicaliza o que passo a chamar de A arte de conversar, ao recusar o diálogo com determinado tipo de interlocutor:

"Se eu soltar esse lápis, ele vai para o chão ou para o teto?" De acordo com a resposta, eu fico ou vou-me embora sem conversar...
E as pessoas de fé? Elas se regem pelo "Credo cuia absurdum" (Creio PORQUE é absurdo), não há nada de racional no que creem. Bem, então vejamos: "Há um homem que ressuscitou depois de três dias morto". Não converso, mas respeito. "O corpo de Cristo está presente na hóstia." Não converso, mesmo respeitando sua crença.
No entanto, crenças religiosas podem ser fonte de grave intolerância, mormente quando o religioso não tem muita segurança em sua fé e precisa combater externamente sua dúvida, como um homofóbico precisa eliminar sua perturbação sexual interna matando um gay. Se um desses grita "Morte aos cães infiéis!", sinceramente: não converso, não respeito e vou lutar contra.
O mesmo se aplica aos fanáticos da religião lulopetista.”

            O tema interessa muitíssimo a este blogueiro, que publicou em O mito do vaso partido e outros escritos (ExLibris, 2010), artigo intitulado A arte de conversar. (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2015/10/conversar-uma-arte.html)
            Em um determinado aspecto, difícil de ser praticado, é bom que se diga, discordo de Daudt.
            É verdade que aquele que está disposto ao exercício da conversação tem a expectativa de receber de seu interlocutor ideias de valor, de espírito, concatenadas e vigorosas. Não espera conversar com um tolo. Em Montaigne encontramos valioso alerta:

“A tolice é uma qualidade má; porém não poder suportá-la, e irritar-se e roer-se por causa dela, como me acontece, é uma outra espécie de doença que pouco fica devendo à tolice em importunidade.”

O desenvolvimento da tolerância (não no sentido moral ou religioso da palavra, porém no autêntico reconhecimento das diferenças), portanto, nos parece outro elemento fundamental para o diálogo.
Esta mesma tolerância tem a ver com o não-desejo do convencimento. Se há “necessidade” (interior, inconsciente) do convencimento do outro, a conversa torna-se impossível.
            Concluo A arte de conversar apresentando uma condição ímpar, facilitadora da boa conversa:

Conversar com um amigo é outra coisa. A amizade constitui-se então em uma condição facilitadora do diálogo, especialmente pela existência de intimidade e confiança recíprocas. Desaparecem o temor, a preocupação com o interesse, a tendência ao julgamento: desarmam-se os espíritos. Concordar ou divergir tornam-se nada mais que qualidades intrínsecas do diálogo, nunca uma ameaça, mesmo que isso represente um “sacrifício” narcísico. Uma conversa entre dois amigos tem o poder de transformá-los a ambos.

Assim dá gosto conversar!



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