quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Relação médico-paciente: as duas faces da moeda


(Roteiro para discussão em grupo
com estudantes de Medicina)
  

            Muito se tem escrito sobre a importância da relação médico-paciente (RMP), na maioria das vezes enfatizando-se os aspectos ligados ao paciente, como a fragilidade ocasionada pela doença, pela dor física e psíquica, pelo medo da morte, entre outros. Tais fatores são todos verdadeiros e importantíssimos, e devem ser cuidadosamente observados pelo médico.
            Entretanto, já que se trata de uma relação, é preciso lembrar que a moeda tem duas faces. Pouco ou nada se fala a respeito do médico, de seu comportamento e atitudes perante o paciente, o que certamente há de influenciar de forma decisiva a RMP.
            De que é feito um bom médico? De que se constitui? Como se forma um bom médico? São perguntas difíceis, porém fundamentais, para as quais certamente não há respostas completas e definitivas. Não importa; já se afirmou que “o que estraga a pergunta é a resposta”. De modo que, se no futuro os estudantes de Medicina mantiverem em mente estas questões em seu cotidiano profissional, me dou por satisfeito.
            Nada nos impede, no entanto, de arriscar uma resposta, como estímulo ao nosso aparelho de pensar. O bom médico é composto por três elementos fundamentais, cada um deles comportando uma miríade de outros subelementos.
            O primeiro deles é o conhecimento técnico-científico inerente à Medicina. Sem isso, teremos apenas charlatães, alguns dos quais chegarão a ser “bem sucedidos” na profissão. Em consequência, é preciso estudar, estudar, estudar sempre, estudar enquanto for exercida a profissão de médico. O profissional desatualizado chega bem perto do charlatão; ele pode até ser bem intencionado, porém já não pode atender seu paciente com a eficiência desejada.
            A imensa complexidade da Medicina levou inevitavelmente à especialização médica e às subespecializações, no afã de aprofundar o conhecimento em cada área específica. Talvez possamos considerar o chamado clínico geral também um especialista, em generalidades. Isso tem profundas implicações no ensino médico, mas que não cabe no escopo deste pequeno texto.
            A Internet tem se constituído numa ferramenta poderosa e eficiente na função de manter os profissionais atualizados, em todas as áreas do conhecimento humano. Manejá-la bem é obrigação do médico contemporâneo. (Não é raro, nos dias de hoje, que o próprio paciente tenha pesquisado sobre seus males na Internet, antes da consulta médica. Cuidado, ele pode chegar muito bem informado...)
            O segundo elemento a compor o bom médico é o “bom senso”, ou senso comum. Ou senso clínico, se assim o desejarem. Não estou certo se se trata de uma condição inata, mas não há dúvida que pode ser aprimorada constantemente. O fato é que desde cedo, enquanto alguns estudantes revelam enorme aptidão para o atendimento médico, do qual a RMP é fundamental, outros mostram-se completamente inábeis, desajeitados, ansiosos, pouco à vontade diante do paciente. Estes devem procurar especialidades médicas nas quais o contato com o paciente é mínimo ou até mesmo inexistente. Alguns encontram na pesquisa o lugar ideal para se desenvolverem com sucesso. (De resto, a escolha da futura especialidade deve ser cuidadosamente pensada, discutida, para que se evitem equívocos capazes de destruir a vida de um profissional.)
            Chegamos ao terceiro e mais complexo elemento constituinte de um bom médico. Complexo pela sua abrangência e dificuldade para ser alcançado, porque demanda tempo  e forte disposição de espírito. Refiro-me à cultura geral. Sua aquisição começa bem antes do curso de Medicina e depende, no início, do adequado ensino fundamental. Quando o estudante chega à Universidade, espera-se que ele já traga um bom cabedal de conhecimentos ditos gerais, nas diversas áreas do conhecimento, particularmente na área humanística. O que há de influenciar decisivamente sua formação como ser humano, e por conseguinte, sua atuação como médico.
            Penso que o contato com as artes de modo geral, e com a Literatura e Filosofia em particular, seja da maior importância na formação do médico. Além de proporcionar o melhor conhecimento do ser humano – o objeto mesmo de trabalho da Medicina – este contato auxilia a pessoa do médico na difícil compreensão da existência, na aceitação das continuadas frustrações ao longo da vida, nas agruras da prática médica cotidiana. Ajuda, enfim, no conhecer-se a si mesmo. Só assim será possível o melhor relacionamento com o outro, seja ele um paciente ou não. Dá-se a isso o nome de formação humanística.
            Do mesmo modo que a Medicina é uma ciência que requer o livre pensar para se desenvolver, essa cultura geral deve ser perseguida também com total liberdade de pensamento, despojada de quaisquer fundamentalismos ou pré-concepções. A boa notícia é que temos a vida toda para isso!
            Diversos outros subelementos constituintes do bom médico, como por exemplo a capacidade de desenvolver empatia, o saber ouvir, o total comprometimento para com o paciente, podem ser enquadrados nos três elementos fundamentais acima descritos.

Um comentário:

  1. Otimo. Resumo perfeito dos parametros de uma profissao impossivel: a medicina. É desumano pedir a alguem que seja um bom medico. É pedir que ele seja um novo Da Vinci...

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