Roteiro para
discussão em seminário
com estudantes de
Medicina.
Entrava D. Quixote em Serra
Morena, acompanhado do bom e fiel Sancho Pança, em busca de novas aventuras,
quando se depararam com uma maleta no meio da estrada. Aberta, continha belo
soneto, cuja primeira estrofe aqui reproduzo:
“Ou é que falta a Amor conhecimento
ou
sobra-lhe maldade, ou esta pena
não
quadra à ocasião que me condena
ao
gênero mais duro de tormento.” (1)
Logo
o nosso Cavaleiro Andante concluiu que o autor dos versos e dono da maleta era
um “desprezado amante”. Não demorou para encontrarem o tal fulano, maltrapilho,
delirante, a quem Sancho apelidou de o Roto da Má Figura, em analogia ao
próprio Cavaleiro da Triste Figura, seu amo. Receberam-no gentilmente, apesar
da louca aparência do homem. Porém, era evidente que para os males relatados pelo
esfarrapado – sem dúvida, males de amor, como antecipava o soneto –, não havia
qualquer remédio.
Então
surge a surpreendente fala de Quixote, a razão mesma desta pequena crônica:
“E
quando a vossa desventura fosse daquelas que têm fechadas as portas a todo
gênero de consolação, pensava ajudar-vos a chorá-la e pranteá-la como melhor
pudesse, pois é sempre consolo nas desgraças achar quem delas se doa.”
Consideramos esta fala um
eloquente exemplo de empatia. A empatia
pode ser conceituada como uma resposta afetiva adequada à situação em que se
encontra a outra pessoa. Em outras palavras, significa colocar-se no lugar do
outro. Parece constituir-se uma resposta humana universal, e que leva ao
comportamento do tipo altruísta (nada quixotesco). Certos animais ditos
superiores também demonstram esta habilidade para com o semelhante.
Assim,
torna-se óbvia a importância da empatia na relação médico-paciente (RMP), e
muito se tem escrito sobre o tema. Porém, há um determinado aspecto dessa
questão que tem sido pouco enfatizado e que tem grande importância prática.
Quando se fala em colocar-se no lugar do outro, isso geralmente se refere ao
médico, a pessoa que está diante do sofrimento do paciente. Desejo aqui chamar
atenção para o fato de que tal resposta afetiva precisa ser comunicada ao
paciente de forma clara, como o fez com todas as letras D. Quixote.
E Quixote o faz em situação
delicada, onde consolar é muito difícil, pois não há muito o que fazer pelo
outro, senão chorar com ele, o que não é pouco em tais circunstâncias. (Cervantes
bem o sabia, já ao final do século XVI, ao tratar dos aspectos mais trágicos da
vida com humor inigualável.) A analogia com o apoio que o médico pode oferecer
às pessoas enlutadas pela morte de um ente querido, em particular os
familiares, fica aqui evidente. E nessas condições, apenas ouvir também não é
pouco. De resto, ouvir talvez seja a mais árdua e difícil tarefa para o médico
nos dias de hoje, e constitui, sem dúvida, o primeiro estágio para o surgimento
da empatia.
Em tais situações, a
comunicação dos afetos ligados à empatia são transmitidos através de linguagens
outras que não a verbal. A expressão corporal, na forma de uma afetuoso abraço,
por exemplo, ou da expressão facial do médico, pode ter maior significado que
as palavras.
Em
contrapartida, há certo tipo de médico extremamente silencioso, que pouco ou
nada fala durante a consulta, o que não significa necessariamente
um problema ou defeito, pois cada um tem seu próprio temperamento e modo de
ser. No entanto, é possível que mesmo sendo empático para com o paciente, este
profissional não seja capaz de lhe “dizer” isso, transmitir-lhe o afeto de que
está tomado diante do sofrimento daquela pessoa. E o paciente não pode sentir a
empatia vinda de seu médico, o que há de afetar inevitavelmente a RMP.
A
coisa não para por aí. Quando o médico comunica seus próprios sentimentos de
empatia ao paciente, e este é capaz de senti-los como sinceros e verdadeiros,
também ele, o paciente, torna-se capaz de desenvolver adequada resposta afetiva
para com o médico, estabelecendo-se assim a RMP ideal.
O termo Empatia foi usado
pela primeira vez no início do século XX pelo filósofo alemão Theodor Lipps (1851-1914),
referindo-se a uma relação entre o ser humano e um objeto inanimado, como por
exemplo, entre o artista e o espectador que se projeta a si mesmo numa
determinada obra de arte. Em se tratando de RMP, não há objeto inanimado em
questão: ambas as duas pessoas interagem afetivamente, ou pelo menos assim deveriam
fazê-lo.
Nunca é demais ressaltar
que a Literatura, ao longo de sua história – e o romance cervantino é apenas um
bom exemplo disso –, representa fonte inesgotável de aprendizado a todos
aqueles, incluindo os médicos, que desejam aprimorar-se na relação com seus
semelhantes. A Vida mesma, é vida de relação.
(1) Tradução de Sérgio Molina, Editora 34,
2002.
Querido André já imaginava o que estava por ser postado, mas veio melhor ainda!!!
ResponderExcluirMuito bom! Aí está perfeitamente delineado o valor da literatura de ficcão como instrumento de conhecimento de si e do outro. Nunca acabaremos de ler o Quixote!
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