Da série Humor e Morte.
António e Manuel eram vizinhos de
longa data. Passavam-se os anos e a inimizade entre eles crescia
assustadoramente, movida talvez por um ódio ancestral, já que ambos,
portugueses, tinham parentes ainda residentes nos arredores de Viseu, centro-norte
de Portugal. Não se lembravam mais da origem dos desentendimentos ocorridos há
pelo menos quarenta anos. Sabiam apenas do ódio mútuo.
Ambos pensaram muitas vezes em
mudar-se, seria um modo de livrar-se do forçado convívio, embora convívio não
seja a melhor palavra para expressar aquela relação de permanente conflito, mas
apegados as suas casas, construídas em meio a grandes terrenos, praticamente
duas chácaras, nenhum deles desejava ceder terreno ao inimigo. Seria admitir a
derrota.
Haviam apelado para a Justiça
inúmeras vezes, uma trabalheira danada, gastos absurdos com advogados,
intimações e seguidas audiências, e o juiz repetia a frase de sempre, em tom de
ironia e deboche, Já sei, briga de vizinhos. António, o mais sensível e
ponderado dos dois, mortificava-se com aquelas palavras, sentia-se humilhado,
pois Manuel era de fato quem procurava briga. Manuel, talvez de forma
inconsciente, nutria-se daquele ódio, transformara aquelas pendengas banais em
razão de viver, aposentado que era, sem nada mais o que fazer na vida.
Exatamente por mais sensível,
António era quem mais sofria com a situação. Analisou todas as alternativas
possíveis para a solução do conflito – conflito é pouco, o que havia era uma
guerra – e chegou à espantosa conclusão de que precisava matar Manuel. Digo
espantosa, porque António era homem de bem, incapaz de matar uma aranha caranguejeira
que eventualmente invadisse seu terreno, embora tivesse horror às aranhas. Sim,
não restava outra alternativa senão matar seu vizinho.
António consultou os especialistas.
Informaram-lhe que o crime precisava ser perfeito, ou ele seria o primeiro incriminado,
pois era uma espécie de suspeito natural. Portanto, não podia confiar em
ninguém, não podia haver um matador profissional, ele mesmo devia perpetrar o
assassinato, sem testemunhas. Nada disso o desanimou. Passou dias e dias
arquitetando seu plano, em todos os detalhes.
Avisou aos familiares e amigos que
passaria alguns dias de férias em Portugal e viajou. Após dois dias em Lisboa tomou o voo para Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, usando passaporte falso, onde
contratou um negro de dois metros de altura, muito magro e afável, que atendia
pelo nome de Jean-Pierre e não compreendia uma palavra do português. Depois de
muito custo, chegaram à floresta à margem direita do Rio Congo, a procura do Dendrobates tinctorius, conhecido como Blue poison dart frog, ou
rã-dardo-venenosa-azul, um minúsculo sapinho capaz de matar um elefante com seu
poderosíssimo jato de veneno. António tinha a esperança de encontrar também
alguns bonobos, habitantes deste lado do rio, o que não se concretizou.
Depois de duas semanas de
incessantes buscas, Jean-Pierre, ele também um especialista, encontrou o Dendrobates, próximo a um formigueiro de
trinta metros de diâmetro. António estava informado sobre isso: o sapinho
alimentava-se de formigas, de onde extraía matéria prima para a elaboração de
seu terrível veneno. Em cativeiro, perdia a capacidade de produzir a toxina
mortal. Com extremo cuidado, o sapinho foi colocado numa pequena caixa de
madeira; numa outra, uma boa ração de formigas. Retornaram a Lisboa, e em
seguida ao Brasil, António trazendo Jean-Pierre a tiracolo. Afeiçoara-se ao
negro. (Na alfândega brasileira, perguntado se trazia queijo ou bacalhau,
António afirmou que nada tinha a declarar.)
Em casa, sem que ninguém sequer
suspeitasse de seu plano, nem mesmo o negro Jean-Pierre, na obscuridade da
madrugada, usando luvas de borracha que chegavam até os cotovelos, António colocou
o Dendrobates na caixa de correio de
Manuel. Dois dias depois, quando a ambulância chegou tocando a sirene à casa do
vizinho, não havia mais nada a fazer, apenas constatar a morte de Manuel. O plano
fora de um êxito completo.
António preparava-se para gozar a
vida em paz quando um acontecimento aparentemente sem importância chamou-lhe a
atenção. Um dos cães do ex-vizinho, um belo pastor belga malinois, apareceu
morto no quintal, subitamente e sem causa aparente. Talvez tenha sentido falta
do dono, pensou António. A situação tornou-se realmente alarmante quando um de
seus próprios cães, um enorme e saudável dogo argentino, apareceu morto de
forma semelhante. António solicitou a um veterinário amigo que procedesse a uma
necropsia, mas nada de anormal foi detectado nas vísceras do animal.
Quando o terceiro cachorro foi
encontrado morto, António atinou, O Dendrobates assassino está solto no
quintal! Chamou Jean-Pierre, explicou-lhe sem maiores detalhes a série daquelas
ocorrências, e iniciaram minuciosíssima busca em todo o terreno, a cata do
monstro. Como nada tivessem encontrado, a caçada deslocou-se para a casa do
falecido vizinho, realizada à noite, nas condições mais adversas, para não
levantar suspeitas na viúva. Nada encontraram.
Uma semana depois, quando numa manhã ensolarada a
ambulância entrou na rua de sirene ligada e estacionou três casas adiante da
sua, Antônio sentiu forte dor no peito e caiu fulminado.
Ótimo conto enlaçando boa trama com dose certeira de ironia. A dor no peito é fecho magistral.
ResponderExcluirQue bom que gostou, Paulo!
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