“A Igreja Ortodoxa está no cerne da
música de Arvo Pärt”, escreveu William
Robin
para o New York Times, neste 27 de maio.(1) E o compositor estoniano, aos 78 anos de
idade, completou: "A religião guia todos os processos de nossas vidas, sem
que tenhamos consciência disso. ...É verdade que a religião desempenha papel
muito importante em minhas composições, mas não consigo descrever como isso
funciona realmente."
Considero-me um aficionado do compositor,
que ouço há mais de 10 anos; posso gabar-me de possuir sua discografia quase
que completa. E é com enorme entusiasmo que recebo a notícia de sua chegada aos
Estados Unidos pela primeira vez em 30 anos, para apresentações em Nova York e
Washington, quando as relações entre sua música e religiosidade – Pärt é
cristão ortodoxo oriental praticante – vêm à tona. “Componho música para mim
mesmo, baseado em minha própria cognição. Por essa razão, ela reflete valores
que são importantes para mim. Não encarrego minha música de discutir valores religiosos
ou ortodoxos especiais. Em minha música, procuro refletir os valores que podem
tocar todo indivíduo, cada pessoa”, acrescentou Pärt.
Em 1968, a estreia de "Credo",
sua primeira composição abertamente sacra, foi censurada pelas autoridades
soviéticas, que viram em sua música um ato de dissidência política, e suas composições
desapareceram das salas de concertos. Ressurgiu em
1976, foi com Für
Alina, utilizando-se da técnica “tintinabulante”: “Um entremear de linhas
melódicas em que uma voz desenha um acorde, enquanto a outra descreve voltas em
torno dele”, nas palavras de William Robin.
Spiegel
im Spiegel e Kanon Pokajanen tornaram-se famosas representações
da técnica minimalista, cujo ápice é atingido nas composições corais de Pärt.
Porém, o
artigo de Robin destaca também o que chama de “espiritualidade abstrata e
elegante”, especialmente após o aparecimento do álbum Tabula Rasa, em 1984, terminando por classificar Arvo Pärt como um
“compositor para todas as religiões”, e até mesmo para um “misticismo mais
amplo”.
Bem,
chegamos ao ponto que me interessa particularmente, e que espero possa
despertar alguma curiosidade no leitor que ainda desconheça o compositor
estoniano. O artigo do New York Times, ao analisar a obra de Pärt, começa
tratando de religião, passa à espiritualidade, e acaba chegando ao misticismo.
Utiliza-se ainda da expressão “realidades humanas universais”, e por pouco não
cita os “sentimentos oceânicos”, descritos por Romain Rolland (se não me falha
a memória), e contestados por Freud.
A enorme
subjetividade de tais conceitos torna perfeitamente possível que a música de
Arvo Pärt seja apreciada pelos que creem e pelos que não creem. Os primeiros
verão nela mais um exemplo de manifestação ou influência divina, na qual se
inspira o compositor. Os que não creem verão – não com menor grau de admiração
e espanto –, a que ponto chegou a evolução humana, capaz de construir obras tão
espetaculares, mesmo que não consigamos descrever como isso funciona, no dizer
do próprio Pärt. O que desejo destacar é que a versão religiosa privilegiada
pelo articulista do NYT não é a única possível para explicar, compreender e
ouvir a belíssima música de Arvo Pärt. Ouço-a com frequência e a reverencio,
com meus ouvidos que não creem.
(1) http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/05/1460374-igreja-ortodoxa-esta-no-cerne-da-musica-de-arvo-part.shtml