A notícia da morte do patriarca
espalhou-se como fogo em paiol de milho pela vasta região de cerrado em torno
da sede da antiga propriedade onde ele se estabelecera com a família havia mais
de cinquenta anos. Para o velório
acorreram precisamente 93 pessoas, que somadas aos parentes mais próximos e
aderentes, incluindo alguns filhos bastardos, chegava à espantosa cifra de mais
de uma centena de pessoas, espantosa por tratar-se de área tão despovoada daquela
esquecida Minas Gerais.
O
velório transcorreu sem novidades, com café preto, fraco e doce, a pinga
branquinha acompanhada de mandioca cozida servidas assim que o relógio da sala
badalou a meia-noite, a conversa animada porém em voz baixa, respeitosa como
exigia a ocasião.
Às
nove da manhã saiu o féretro, que percorreu cerca de quilômetro e meio até o
cemitério local, cercado por um baixo muro de pedras, com poucos túmulos rasos,
cobertos apenas por uma lápide simples contendo, como de praxe, o nome do
morto, a data de nascimento e o dia da morte, uns poucos com a fotografia em
preto e branco do falecido, desbotadíssima, pregada na cruz sobre a cabeça da
lápide, e a inscrição Saudade. Bem no centro do cercado havia uma construção
que, embora ainda pobre, destacava-se das demais, em forma de minicapela, toda
revestida de ardósia, com portãozinho de ferro, o mausoléu da família. Ali
ficariam os restos mortais do patriarca, ao lado dos ossos de seus pais.
As exéquias
foram ministradas pelo padre responsável pela capela da fazenda, ele mesmo um agregado
indispensável para a celebração das missas de domingo e dias santificados,
batizados, casamentos e funerais.
O caixão já
havia sido devidamente acomodado no pequeno mausoléu, as orações chegavam ao
final, quando alguém avisou à viúva do patriarca que todos os presentes
voltariam para o almoço na sede, pois muitos viajaram durante toda a noite e
estavam famintos. Belarmina levou as mãos à cabeça, Como alimentar tanta gente
assim de improviso? Ludovica, a cozinheira que também acompanhara o enterro,
sugeriu o cardápio: arroz, tutu de feijão, mandioca cozida, macarronada, frango
ao molho pardo, linguiça defumada e farinha, Dá pra todo mundo, Sinhá, garantiu
a cozinheira. Belarmina não sossegou, O problema não é a comida, Ludoca, são os
pratos e talheres; não dá pra todo mundo.
O povaréu saiu
devagar do cemitério e nem precisou ser convidado, foi todo para o almoço. Na
cozinha o alvoroço era grande, gente providenciando lenha para o fogão, os
frangos sendo esfolados ainda vivos, o feijão mulatinho sendo cozido para o
tutu, as mandiocas branca e amarela descascadas às pressas, todo o macarrão
disponível sendo preparado com molho de tomate. Todos os pratos e garfos foram
resgatados dos baús e despensas da casa, mas para desespero de Belarmina, conseguiram
juntar apenas 37 pratos e 31 garfos. Não era costume o uso de facas durante as
refeições, Para cortar servem os dentes, diziam.
Lá pelas três
da tarde foi servido o almoço. Enquanto os primeiros 37 privilegiados faziam
suas refeições – seis comiam com as mãos –, os demais aguardavam que eles terminassem,
o que era agravado pelo fato de que a maioria refazia o prato uma ou duas
vezes. Quem chegasse naquele momento ao pátio da sede veria a cena insólita e tragicômica:
37 pessoas comendo em silêncio, o prato numa mão, o garfo diligente na outra,
compenetradas, com visível semblante de satisfação e alívio, enquanto que mais
de 70 pessoas permaneciam em silêncio, tristíssimas, não pelo morto, mas pela
fome.
Quando
o primeiro terminou de comer foi uma correria geral! Verdadeira multidão avançou
sobre ele, arrancando-lhe das mãos os valiosos utensílios, disputados a tapas,
puxões de cabelo, caneladas, um bafafá dos diabos. Mal fora lavado no tanque de
água corrente e o prato já estava cheio novamente. Para cada um que terminava
sua refeição, a cena de pugilato se repetia, com ferocidade crescente e
proporcional à fome dos demais. Os que não conseguiam fazer parte da segunda
leva preocupavam-se com a quantidade de comida nos panelões, que decrescia a
olhos vistos. Com o puxa e empurra, alguns pratos de louça quebraram-se, enfurecendo
ainda mais os esfomeados.
Desde
o início do almoço a aguardente foi distribuída com fartura, e aqueles que
esperavam pelos pratos e garfos tapeavam as tripas com o calor da pinga. De
estômago vazio, depois de hora e meia estavam todos bêbados. Foi quando o tempo
fechou de vez. Aqueles que estavam prestes a terminar de comer, com medo das
agressões, saíam correndo pelo mato afora, ainda com comida no prato, e perseguidos
pela turba enfurecida que gritava O prato O prato O prato, era só o que se
ouvia. Os cachorros, abundantes na região e cronicamente famintos, fugiram
diante da balbúrdia, talvez tementes de que acabassem nas panelas.
Não
se sabe de morte, mas o número de feridos foi grande, alguns gravemente, com
bordoadas no crânio, braços quebrados, joelhos arrebentados pelas quedas no
terreno pedregoso. (Parece que muita gente ficou sem comer...)
Assim
morreu o patriarca e com ele sucedeu-se o trágico fim de seu patriarcado.
Passado o resguardo, pelo sim pelo não, a viúva mandou vir da cidade 250 pratos
e garfos, e inaugurou uma nova era, agora de matriarcado, que perdura até os
dias de hoje.
Que conto mais saboroso de se comer com os olhos, bom demais da conta, uai!
ResponderExcluirNão estou certo se todos os mineiros vão apreciá-lo, Nazaré. Obrigado.
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