segunda-feira, 28 de abril de 2014

Chuveiro de hotel


Álvaro era o tipo do sujeito considerado por todos que o conheciam como politicamente incorreto. Desse a ele uma chance e faria um discurso capaz de escandalizar o mais libertário dos homens. Às vezes Álvaro abusava dessa qualidade e tornava-se inconveniente, antissocial, agressivo mesmo, Tudo em prol da liberdade de pensamento e expressão, dizia ele, certo de que sempre os fins justificavam os meios.
            Preparava-se para uma curta viagem a São Paulo no fim de semana e antegozava aquilo que julgava ser um dos maiores prazeres dessa vida, um banho num bom chuveiro de hotel. Sempre que ia à Capital hospedava-se num hotel 5 estrelas e logo ao chegar, antes mesmo de desfeitas as malas, tomava um banho de chuveiro, com duração de no mínimo 30 minutos, É pra relaxar, dizia ele, a água na temperatura ideal, o jato forte caindo sobre a cabeça, a nuca, o dorso, verdadeira massagem de relaxamento. Isso é o que há de melhor num 5 estrelas, repetia ele.
            Pois daquela vez não seria diferente. Realizado o check-in, Álvaro foi conduzido a uma bela suíte, com cama king size, tv 52 polegadas 3D, decoração impecável. Álvaro só tinha olhos para o banheiro. O box do chuveiro pareceu-lhe perfeito, revestido de mármore de carrara, com aquela ducha enorme, verdadeira cachoeira. Despiu-se e foi ao banho.
            Ajustada a temperatura da água pela abertura milimetricamente dosada das torneiras quente e fria, Álvaro iniciou a tão esperada experiência que rotulava de Terapia pela água! Transcorridos apenas dois ou três minutos do delicioso banho, surgiu-lhe na mente, sabe-se lá de onde, em alto e bom som, sílaba por sílaba, a terrível palavra: CAN-TA-REI-RA!
            E não ficou nisso, para desespero de nosso hóspede 5 estrelas. As imagens sucediam-se:
            – Cantareira 12,9.
            – Cantareira 12,6.
            – Cantareira 12,2.
            – Cantareira 12,1.
            – Cantareira 11,9.
            Álvaro fechou imediatamente as torneiras para recuperar-se do susto e poder pensar. O que é isso, um pesadelo?, perguntou a si mesmo. Como se encontrasse ensaboado, abriu novamente as torneiras, mas a contagem regressiva continuou:
            – Cantareira 11,8.
            Álvaro fechou a água e saiu do banho. Isso é cansaço, tenho trabalhado muito, não tenho dormido bem, pensou. Vestiu-se e saiu para o almoço. Entretido com os negócios, a razão da viagem, voltou no início da noite para o hotel, ansioso por um bom banho de chuveiro.
Repetiu-se a experiência: nem bem havia regulado a temperatura da água, martelou-lhe na cabeça a palavra CANTAREIRA. E pior:
            – Cantareira 11,7.
            Álvaro fechou as torneiras suando frio e com taquicardia. O que é isso, meu Deus? Beliscou-se para ter certeza de que estava acordado. O que está acontecendo comigo? Não estou nem aí pra Cantareira, só desejo tomar o meu banho!
            Porém, a cada nova tentativa de banhar-se, o pesadelo voltava: CANTAREIRA CANTAREIRA CANTAREIRA.
Na manhã seguinte, bem cedo, Álvaro fechou a conta no hotel, antecipou o voo para casa, e à noite recusou-se a ver os jornais pela tv.
            

3 comentários:

  1. Tal qual o Álvaro história, também aprecio um longo banho numa ducha de hotel. Diferentemente dele, a fixação de poder esgotar Cantareira ser-me-ia tão prazerosa quanto.

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    1. Sabe-se lá por quê, ele não pôde... As vozes que vêm de dentro são poderosas.

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  2. Eu arrisco um palpite: no fundo ele sabe que se todo mundo fizer isso, nem banho rapidinho vai ter mais, logo, logo...

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