Em conversa entre Hannah
Arendt e Günter Gaus, em 1964, o jornalista interroga a filósofa sobre a
questão do “ser humano que encontra satisfação no processo de mero trabalho e
consumo”. (1)
Arendt responde:
“Não
acredito que possa existir nenhum processo de pensamento sem experiência
pessoal. Todo pensamento é um pensamento posterior, isto é, uma reflexão sobre
algum fato ou assunto. Não é assim? Vivo no mundo moderno, e evidentemente
minha experiência se dá no e sobre o mundo moderno. Isso, afinal, é incontroverso.
Mas a questão de simplesmente trabalhar e consumir é de importância crucial
porque aqui se define também uma espécie de amundanidade. Ninguém mais se
importa como o mundo aparenta estar.”
Solicitada
a explicar melhor o que significava “mundo” para ela, complementa:
“Agora
emprego o termo num sentido muito mais amplo, como o espaço onde as coisas se
tornam públicas, como o espaço onde a pessoa vive e deve parecer apresentável.
Onde surge a arte, claro.”
É
nesse espaço chamado mundo que, 50 anos depois das palavras de Hannah Arendt,
as pessoas concentram-se cada vez mais em trabalhar e consumir. Talvez mais ainda
que há meia década; atualíssimo, portanto, o assunto. E para dar a devida
importância a este espaço onde vivemos, a filósofa arremata com uma frase curta
e poderosa: “Onde surge a arte.”
Trabalhar
e consumir, sem tomar conhecimento da arte, é ignorar o mundo. É negar o mundo
em que vivemos.
Certa
feita ouvi de uma pessoa que não voltaria ao Louvre porque já lá estivera uma
vez, tinha visto tudo. Pois rever, repetir a experiência é outra forma de
experimentar um novo processo de pensamento. Daí a necessidade de se continuar
re-vendo, durante toda a vida, se possível.
Também
ouvi de um amigo, surpreso diante daquilo que não podia compreender, Mas você
lê um livro mais de uma vez? Ele nunca ouvira falar de re-leitura.
Quantas
vezes será necessário ouvir a Sonata para piano no. 32, op. 111, de
Ludwig van Beethoven, para não mais se surpreender por algum trecho da magnífica
obra?
Infinitos
olhares, audições, releituras, são infinitas as possibilidades de cada um em re-experimentar
a obra de arte, re-viver o mundo onde se apresenta. Cada uma e todas elas,
estas experiências passam a fazer parte do sujeito, tornam-se experiências
pessoais, realizam a expansão psíquica de cada um. Porém, no dizer de Arendt:
“No
trabalho e no consumo, o homem é totalmente lançado de volta para si mesmo.”
Não
se trata aqui de um voltar-se a si mesmo no sentido do autoconhecimento, da autorreflexão,
da compreensão da posição do próprio homem no universo, enfim, sobre o possível
sentido da vida. Trata-se de um ensimesmamento empobrecedor, que acaba por
redundar em mera e vazia solidão, quando não em profunda melancolia.
Não há pois qualquer
possibilidade de expansão psíquica no simples trabalhar e consumir, alertava
Arendt há meio século. Um bom conselho para o homem contemporâneo.
(1) Arendt H.
Compreender: formação, exílio e totalitarismo (Ensaios). Companhia das Letras, 2008.
Que vasto tema, que provocação! Se trabalho e consumo excluem a expansão psíquica, que se daria com um hipotético sujeito (não muito raro, diga-se) que se acomodasse no ócio quase total e permanente? Na próxima crônica, esperamos ler uma reflexão sobre essa delicada balança que sustenta o trabalho e o repouso, para que nessa oscilação possa ocorrer a desejada saúde mental.
ResponderExcluirA Arte é um trabalho que dá prazer...
ResponderExcluirParabéns pelo texto! Obrigada, André!