Lá pelos
idos de 60, ia eu pela metade do curso de Medicina e, embora um menino, já
cultivava meus sonhos e ambições. Um deles era tornar-me um bom cirurgião. E o
fascínio pela Cirurgia começou com o fascínio pela Anatomia (entretido com um
colega no estudo das veias da pelve, não nos demos conta de que o anatômico já
havia sido fechado, e passamos a noite entre os cadáveres, respirando o
fortíssimo cheiro do formol, com enorme entusiasmo).
De modo que,
quando foi anunciada a aula do Prof. Portugal, minha excitação chegou ao auge!
É preciso esclarecer antes de mais nada que o Prof. José Ribe Portugal já era
uma lenda na Faculdade de Medicina. Neurocirurgião de renome internacional,
havia desenvolvido certa via de acesso a determinada região do cérebro, uma
técnica cirúrgica a revolucionar o tratamento de patologia específica. À época,
eu sabia muito pouco além disso, mas já era o bastante para provocar no tal
menino a mais profunda admiração pelo homem. (A isso, hoje, dou o nome de
idealização. E daí?)
Acrescido a
tudo isso, Prof. Portugal dava apenas uma aula durante todo o ano! Era o
bastante, em se tratando de quem ele representava para a ciência do país,
talvez do mundo. Talvez fosse mais que o bastante, era mesmo um privilégio que
ele se dignasse a proferir uma aula para estudantes do quarto ano de Medicina.
Percebi que
poucos, pouquíssimos colegas meus compartilhavam deste ponto de vista, alheios
àquele acontecimento, o que fazia que me sentisse muito só, pensando e sentindo
aquela experiência que me parecia transcendental, na expectativa de que ela
fosse determinante para meu futuro dentro da profissão. Uma aula com o Prof.
Portugal! Porém, jamais considerei que aquilo pudesse ser um delírio meu;
pensava que os outros é que não percebiam a importância daquele momento...
Até que
chegou o dia da grande aula. Era uma tarde quente de uma quarta-feira, a sala
estava abafada, as cadeiras desarrumadas, um projetor de slides em meio às
cadeiras, nada que se parecesse com o ambiente propício para uma Aula Magna, o
que em mim causou certo constrangimento. A presença do projetor, no entanto, provocou
alguma excitação, Que imagens ele vai nos mostrar?
Com meia
hora de atraso entra na sala o grande homem. De baixa estatura, em torno de 60
anos, cabelos tingidos de preto e fixados provavelmente pelo que se usava à
época, Gumex, bigode bem aparado igualmente tinto, usando um paletó preto,
justo, de corte moderno, o que chamava mesmo a atenção era a gravata, tipo
mexicana, dois cordões negros pendentes do colarinho, terminando numa ponta de
prata. (Não tenho qualquer convicção de que o estilo da gravata seja mexicano.
Apenas assim me parecia, influência de algum filme de faroeste da época.)
Apresentou-se,
modestamente. Desejo apresentar a vocês uma ótima experiência que vivi
recentemente, numa viagem que fiz a Veneza. A cidade é lindíssima!
Iniciou-se
então a projeção de uma série interminável de slides com fotografias de Veneza,
nada profissionais, isso era fácil de se perceber, portanto tiradas por ele
mesmo, o Prof. José Ribe Portugal. E a aula terminou com a frase Espero que
vocês algum dia possam visitar Veneza!
Foi a melhor
aula que assisti em toda a minha vida.
Muito boa André. Quem sabe algum aluno não esteja escrevendo algo muito semelhante sobre você!
ResponderExcluirMais de uma vez, repeti esta experiência com meus alunos. Nunca fiquei sabendo exatamente qual foi o resultado... É possivel, é possivel...
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