sexta-feira, 26 de abril de 2013

Amadeus


Amadeus é homem educado e de bom gosto. Nascido em rica fazenda no município de Ouro Preto, em berço de ouro, posso dizer, pertence a tradicional família local, antiga proprietária de minas de extração de pedras preciosas e semipreciosas. Desde cedo foi educado para as artes, frequentou as melhores escolas no Brasil e no exterior, mas não faz disso estardalhaço; é homem de poucas palavras, muito menos de arroubos irados e destemperos.
Em consequência de longos e aprofundados estudos filosóficos, Amadeus tornou-se ateu, a despeito (ou apesar) da rígida educação Católica Apostólica Romana que recebeu na infância. Também sobre suas convicções costuma manter absoluta discrição, e sempre que possível evita as querelas religiosas, adepto da máxima proferida por Walter Benjamin, a de que “todo convencimento é infrutífero”.
A expressão sempre que possível do parágrafo anterior tem sua razão de ser, não se trata apenas de modo de dizer ou pura retórica. Amadeus, contra sua própria vontade, com frequência vê-se envolvido em questões filosófico-religiosas que o embaraçam tremendamente. Ensimesmado, contrafeito, ele pensa Eu não mereço isso.
Homem inteligente, interessado nos mistérios do psiquismo humano, leitor de A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, é capaz de compreender a inevitável intromissão alheia em sua vida privada, Às vezes trata-se apenas uma provocação dos amigos mais chegados, ele pensa, e mesmo assim aborrece-se com o falatório.
Chega de suspense, caro leitor: o fato é simples, até singelo: Amadeus coleciona imagens sacras.
A coleção é composta por obras de altíssimo valor histórico e artístico, todas do período Brasil Colônia, incluindo duas peças de Aleijadinho, um dos  orgulhos de Amadeus. Mas que tipo de ateu é você, Amadeus, com a casa assim abarrotada de santos?, provocam os amigos. De qual deles você é mais devoto? Quantas promessas fez para conseguir aquele raríssimo São José? Vai me dizer que não reza à noite, a pedir proteção dos seus santinhos? Confessa, Amadeus, você é um crente...
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, responde ele com disfarçada irritação.
Até que chega a época do casamento de Clotilde, filha única, o outro grande motivo de orgulho na vida de Amadeus. A expectativa em Minas Gerais, talvez até em todo Brasil, é de que seja o casamento do século! Amadeus, pai amoroso, quer presentear a filha com o que de mais valioso possa dispor. Como não é raro acontecer, embora houvesse recebido todas as facilidades para uma educação refinada, como a do pai, Clotilde nunca se interessou por qualquer manifestação artística, muito menos por arte sacra, Um saco..., para usar seu próprio vocabulário franco e rude, ela que não passa de uma menina mimada. Amadeus, pai dedicado, se entristece com o comportamento da filha, mas não perde a esperança, Algum dia ela há de despertar para o Belo, ele costuma dizer. Afinal, quem herdará sua magnífica coleção de arte sacra?
Às vésperas do casamento, Clotilde e o noivo dirigem-se à casa do pai para receber o presente tão generosamente ofertado, Escolham a imagem que vocês mais gostarem! Diante do enorme número de peças, sabe-se lá por obra de que artimanha, Clotilde não se demora na garimpagem, vai direto a uma determinada peça, Quero esta Sant’ Ana com o Menino Jesus.
O sangue gela nas veias de Amadeus! (O leitor perdoe o lugar-comum.) Apesar do amor que nutre pela filha, é como se um braço lhe tivesse sido arrancado: trata-se de sua peça preferida, e a mais valiosa de toda a coleção! Apenas o noivo nota o súbito empalidecimento do futuro sogro.
Palavra empenhada, palavra cumprida, É sua, minha filha, sentencia Amadeus. Afinal, trata-se do casamento da filha única. Abraçam-se, beijam-se os três, em confraternização emocionada, por quem dá e por quem recebe.
Uma companhia inglesa especializada em transporte de obras de arte foi contratada para o traslado de Sant’ Ana e seu Menino, a mesma que trouxe para São Paulo os quadros de Caravaggio recém expostos no MASP. Amadeus toma os cuidados de um verdadeiro profissional e a santa chega intacta ao seu destino, o novo apartamento da filha, igualmente presente do pai.
Retirada da caixa de pinho-de-riga onde estivera embalada, Sant’ Ana ganha o definitivo repouso num belíssimo oratório do século XVII, desnecessário referir a procedência do móvel barroco... Por precaução, pois o apartamento de mais de 800 metros quadrados ainda está bastante desarrumado com a mudança que não termina mais, Clotilde acha por bem manter o Menino Jesus na embalagem, envolto em papel bolha importado, Quando tudo estiver em seus devidos lugares Ele vai para o colo da avó, ponderou ela, com a aprovação do noivo.
Pronta a decoração do apartamento, a festa de inauguração terá como ponto culminante a consagração da Santa pelo arcebispo da arquidiocese, seguida da entronização do Menino Jesus. Dois dias antes do evento, Clotilde, ela mesma faz questão de ir buscar o Menino para transportá-lo, enfim, ao santíssimo colo.
Então, o impensável: Cadê o Santinho, Pai do céu? Cadê o santinho? Vasculhado o apartamento de alto a baixo, revirados todos os armários, revistados baús, malas, caixas, cômodas, gavetas, nada do santinho. Nada! Onde se meteu esse Menino? E agora, o que meu pai vai dizer?, Clotilde resmunga chorosa, ciente acima de tudo da inevitável desvalorização material da obra, agora faltante o divino complemento.
Após três dias de buscas minuciosíssimas, chega-se à definitiva e trágica conclusão, O Menino foi mesmo pro lixo!
Clotilde e o noivo pensam em adquirir um substituto, percorrem todos os antiquários da região, Dinheiro não é problema, alardeia o rapaz com arrogância, mas os meninos que encontram são feinhos demais, indignos do sacrossanto colo de Sant’ Ana, destoam diante da formosura da santa, agora com os bracinhos esticados e vazios, De cortar o coração, De cortar o coração, repete Clotilde.
Certo comerciante de obras de arte chegou mesmo a fazer velada referência ao fato de que havia um lindo Menino Jesus em uma determinada igreja de Mariana..., mas o assunto não prosperou.
Não surge outra opção senão comunicar o sumiço ao pai.
Amadeus permanece calado, em profundíssimo sepulcral silêncio. Os amigos mais íntimos, ao tomarem conhecimento do acontecido, vaticinam É castigo, é castigo, Um ateu não pode colecionar santos, Heresia das mais graves, Visto está, foi o próprio Pai que se encarregou de livrar Seu Filho do profano ambiente, é o que bradam, cada qual com sua metafísica teoria, fingindo consternação, os invejosos amigos de Amadeus.
Mas quando o próprio arcebispo toma Amadeus pelo braço, arrasta-o para um canto da sala, puxa conversa, insinua-se sutilmente com a voz melíflua de quem acredita na força do Diabo, Quem sabe não se trata de um aviso, meu filho, Amadeus não aguenta, perde a paciência, destempera-se, eleva o tom de voz, sem que se possa afirmar que chega a gritar, e diz:
– Padre, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Até hoje, embora ateu convicto, Amadeus espera por um milagre, o retorno do Menino Jesus aos sagrados braços de Sant’ Ana.


5 comentários:

  1. Espetacular! Ironia fina mesclada com a angustia das posturas filosóficas estabelecidas. Gostei do nome do ateu: Amadeus...

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  2. Seu texto é ouro de pura lavra! Magistral narrativa!
    Você é um mestre do conto, André Luís Vianna.
    Espero ansiosa degustar seu livro. Quando?!

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  3. Adorei André, presente é o conto! Achei até a frase de WB lida de um livro que te presenteei em casa e lemos a noite esta frase. O conto chega a ser visual deixando para a imaginação do leitor os detalhes das imagens sacras. Sempre ficção mesclada com vida privada, uma boa receita.

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  4. Concordo com o Sérgio. Ao ler o conto é como se estivesse assistindo a um curta no cinema de tão visual que se tornam os santos.

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  5. Esse conto engloba a gente. Ao lê-lo de repente o leitor se encontra mergulhado nele.

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