Amadeus é
homem educado e de bom gosto. Nascido em rica fazenda no município de Ouro
Preto, em berço de ouro, posso dizer, pertence a tradicional família local, antiga
proprietária de minas de extração de pedras preciosas e semipreciosas. Desde cedo
foi educado para as artes, frequentou as melhores escolas no Brasil e no
exterior, mas não faz disso estardalhaço; é homem de poucas palavras, muito
menos de arroubos irados e destemperos.
Em
consequência de longos e aprofundados estudos filosóficos, Amadeus tornou-se
ateu, a despeito (ou apesar) da rígida educação Católica Apostólica Romana que
recebeu na infância. Também sobre suas convicções costuma manter absoluta
discrição, e sempre que possível evita as querelas religiosas, adepto da máxima
proferida por Walter Benjamin, a de que “todo convencimento é infrutífero”.
A expressão sempre que possível do parágrafo
anterior tem sua razão de ser, não se trata apenas de modo de dizer ou pura
retórica. Amadeus, contra sua própria vontade, com frequência vê-se envolvido
em questões filosófico-religiosas que o embaraçam tremendamente. Ensimesmado,
contrafeito, ele pensa Eu não mereço isso.
Homem
inteligente, interessado nos mistérios do psiquismo humano, leitor de A
interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, é capaz de compreender a inevitável
intromissão alheia em sua vida privada, Às vezes trata-se apenas uma provocação
dos amigos mais chegados, ele pensa, e mesmo assim aborrece-se com o falatório.
Chega de
suspense, caro leitor: o fato é simples, até singelo: Amadeus coleciona imagens
sacras.
A coleção é
composta por obras de altíssimo valor histórico e artístico, todas do período
Brasil Colônia, incluindo duas peças de Aleijadinho, um dos orgulhos de Amadeus. Mas que tipo de ateu é
você, Amadeus, com a casa assim abarrotada de santos?, provocam os amigos. De
qual deles você é mais devoto? Quantas promessas fez para conseguir aquele
raríssimo São José? Vai me dizer que não reza à noite, a pedir proteção dos
seus santinhos? Confessa, Amadeus, você é um crente...
Uma coisa é
uma coisa, outra coisa é outra coisa, responde ele com disfarçada irritação.
Até que
chega a época do casamento de Clotilde, filha única, o outro grande motivo de orgulho
na vida de Amadeus. A expectativa em Minas Gerais, talvez até em todo Brasil, é
de que seja o casamento do século! Amadeus, pai amoroso, quer presentear a
filha com o que de mais valioso possa dispor. Como não é raro acontecer, embora
houvesse recebido todas as facilidades para uma educação refinada, como a do
pai, Clotilde nunca se interessou por qualquer manifestação artística, muito
menos por arte sacra, Um saco..., para usar seu próprio vocabulário franco e
rude, ela que não passa de uma menina mimada. Amadeus, pai dedicado, se entristece
com o comportamento da filha, mas não perde a esperança, Algum dia ela há de
despertar para o Belo, ele costuma dizer. Afinal, quem herdará sua magnífica
coleção de arte sacra?
Às vésperas
do casamento, Clotilde e o noivo dirigem-se à casa do pai para receber o
presente tão generosamente ofertado, Escolham a imagem que vocês mais gostarem!
Diante do enorme número de peças, sabe-se lá por obra de que artimanha, Clotilde
não se demora na garimpagem, vai direto a uma determinada peça, Quero esta
Sant’ Ana com o Menino Jesus.
O sangue
gela nas veias de Amadeus! (O leitor perdoe o lugar-comum.) Apesar do amor que
nutre pela filha, é como se um braço lhe tivesse sido arrancado: trata-se de sua
peça preferida, e a mais valiosa de toda a coleção! Apenas o noivo nota o
súbito empalidecimento do futuro sogro.
Palavra
empenhada, palavra cumprida, É sua, minha filha, sentencia Amadeus. Afinal,
trata-se do casamento da filha única. Abraçam-se, beijam-se os três, em confraternização
emocionada, por quem dá e por quem recebe.
Uma
companhia inglesa especializada em transporte de obras de arte foi contratada
para o traslado de Sant’ Ana e seu Menino, a mesma que trouxe para São Paulo os
quadros de Caravaggio recém expostos no MASP. Amadeus toma os cuidados de um verdadeiro
profissional e a santa chega intacta ao seu destino, o novo apartamento da
filha, igualmente presente do pai.
Retirada da
caixa de pinho-de-riga onde estivera embalada, Sant’ Ana ganha o definitivo
repouso num belíssimo oratório do século XVII, desnecessário referir a procedência
do móvel barroco... Por precaução, pois o apartamento de mais de 800 metros
quadrados ainda está bastante desarrumado com a mudança que não termina mais,
Clotilde acha por bem manter o Menino Jesus na embalagem, envolto em papel
bolha importado, Quando tudo estiver em seus devidos lugares Ele vai para o
colo da avó, ponderou ela, com a aprovação do noivo.
Pronta a
decoração do apartamento, a festa de inauguração terá como ponto culminante a consagração
da Santa pelo arcebispo da arquidiocese, seguida da entronização do Menino
Jesus. Dois dias antes do evento, Clotilde, ela mesma faz questão de ir buscar
o Menino para transportá-lo, enfim, ao santíssimo colo.
Então, o
impensável: Cadê o Santinho, Pai do céu? Cadê o santinho? Vasculhado o
apartamento de alto a baixo, revirados todos os armários, revistados baús,
malas, caixas, cômodas, gavetas, nada do santinho. Nada! Onde se meteu esse
Menino? E agora, o que meu pai vai dizer?, Clotilde resmunga chorosa, ciente
acima de tudo da inevitável desvalorização material da obra, agora faltante o
divino complemento.
Após três
dias de buscas minuciosíssimas, chega-se à definitiva e trágica conclusão, O Menino
foi mesmo pro lixo!
Clotilde e o
noivo pensam em adquirir um substituto, percorrem todos os antiquários da
região, Dinheiro não é problema, alardeia o rapaz com arrogância, mas os meninos
que encontram são feinhos demais, indignos do sacrossanto colo de Sant’ Ana,
destoam diante da formosura da santa, agora com os bracinhos esticados e
vazios, De cortar o coração, De cortar o coração, repete Clotilde.
Certo
comerciante de obras de arte chegou mesmo a fazer velada referência ao fato de
que havia um lindo Menino Jesus em uma determinada igreja de Mariana..., mas o
assunto não prosperou.
Não surge
outra opção senão comunicar o sumiço ao pai.
Amadeus
permanece calado, em profundíssimo sepulcral silêncio. Os amigos mais íntimos,
ao tomarem conhecimento do acontecido, vaticinam É castigo, é castigo, Um ateu
não pode colecionar santos, Heresia das mais graves, Visto está, foi o próprio
Pai que se encarregou de livrar Seu Filho do profano ambiente, é o que bradam, cada
qual com sua metafísica teoria, fingindo consternação, os invejosos amigos de
Amadeus.
Mas quando o
próprio arcebispo toma Amadeus pelo braço, arrasta-o para um canto da sala, puxa
conversa, insinua-se sutilmente com a voz melíflua de quem acredita na força do
Diabo, Quem sabe não se trata de um aviso, meu filho, Amadeus não aguenta,
perde a paciência, destempera-se, eleva o tom de voz, sem que se possa afirmar que
chega a gritar, e diz:
– Padre, uma
coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Até hoje, embora
ateu convicto, Amadeus espera por um milagre, o retorno do Menino Jesus aos
sagrados braços de Sant’ Ana.
Espetacular! Ironia fina mesclada com a angustia das posturas filosóficas estabelecidas. Gostei do nome do ateu: Amadeus...
ResponderExcluirSeu texto é ouro de pura lavra! Magistral narrativa!
ResponderExcluirVocê é um mestre do conto, André Luís Vianna.
Espero ansiosa degustar seu livro. Quando?!
Adorei André, presente é o conto! Achei até a frase de WB lida de um livro que te presenteei em casa e lemos a noite esta frase. O conto chega a ser visual deixando para a imaginação do leitor os detalhes das imagens sacras. Sempre ficção mesclada com vida privada, uma boa receita.
ResponderExcluirConcordo com o Sérgio. Ao ler o conto é como se estivesse assistindo a um curta no cinema de tão visual que se tornam os santos.
ResponderExcluirEsse conto engloba a gente. Ao lê-lo de repente o leitor se encontra mergulhado nele.
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