segunda-feira, 31 de maio de 2021

Quo Vadis, Aída?

 


 

Entre tantos propósitos, incluindo o entretenimento, o Cinema, como o livro, tem a capacidade de registrar fatos históricos para a posteridade. Evidente que o ponto de vista revelado no filme tem a marca do diretor; mas a História também não funciona assim?

Quo Vadis, Aida?, produção da Bósnia e Herzegovina, indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, retrata de forma poderosa um dos momentos mais horrorosos na história da humanidade, ao contar a história do massacre de Srebrenica, em 1995, quando mais de 8 mil bósnios muçulmanos foram assassinados por tropas sérvias.

Com roteiro e direção de Jasmila Žbanić, Quo Vadis, Aida? centra a narrativa na personagem ficcional Aída (Jasna Djuricic), que trabalha como tradutora da ONU em Srebrenica, quando o exército sérvio ocupa de forma violenta a cidade; seu marido e os dois filhos estão entre os milhares de cidadãos que procuram abrigo. 

O desempenho da protagonista lembra O filho de Saul, cujo protagonista também corria desesperado de um lado para outro, sem saber para onde ir, em uma câmara de gás instalada pelos nazistas. Aída é intérprete, esposa, mãe, cuidadora, uma faz-tudo num ambiente non-sense, beco sem saída, situação de desespero crescente, a terminar na tragédia maior.

O filme tem início com a inacreditável negociação envolvendo a ONU, os bósnios e sérvios, cuja irresponsabilidade coloca em risco a vida de milhares de bósnios muçulmanos, verdadeiro caos a revelar a falência das instituições – especialmente da ONU.

      Volto a destacar, o filme é necessário, a despeito de sentimentos como angústia, tristeza e indignação que gera no expectador. Muito de tais sentimentos são provocados pela atuação magistral da atriz principal, Jasna Djuricic.

      Imperdível!

 

 

https://www.adorocinema.com/filmes/filme-285499/criticas-adorocinema/

 

domingo, 30 de maio de 2021

Surpresa

 

Acabara de cortar o pulso quando observou:

– Não imaginava que sangrasse tanto.

 

                        

           Em parceria com Marçal Aquino

                        In Famílias terrivelmente felizes

                        Cosac Naif, 2003

Pandemia

 

1.     Prisão

 

– Essa merda não acaba nunca?

– Acaba.

– E se não acabar?

– Um dia acaba.

– Mas se não acabar...

– Imagine a cena, comum em filmes americanos: o sujeito é condenado a 20 anos de prisão, chega na cadeia e lhe tiram logo todos os pertences, roupas, documentos, relógio, aliança, celular, a fotografia da namorada, recebe as roupas de cor cinza-chumbo da instituição, às vezes com listras brancas, bem dobradas, acompanhadas de cobertor, e ele entra com aquela trouxa nos braços pelos corredores gelados escuros tenebrosos, atravessando portas de aço trancadas que se abrem sob comando central, barulhentas, observado pela turba curiosa de presidiários – colegas –, apupado por alguns, ouve os gritos de provocação atordoado, mariquinha bicha viado, chega na cela a ele destinada, cubículo com cama de concreto e colchonete, pia, vaso sanitário, pequena janela gradeada no alto por onde entra pouca luz, e então pensa, E agora? Isso é o fim do mundo? Pior, não é o fim do mundo, se dá conta, Mas um dia há de acabar, se eu me comportar bem e não for assassinado por algum facínora que não foi com minha cara.

– Ô cara, mas você sabe mesmo animar a gente!

 

 

2.     Gente

 

– Vontade de ir a um supermercado.

– É perigoso.

– Muita gente.

– Vou de máscara.

– Perigoso mesmo assim, contaminação na certa.

– Preciso ver gente, esbarrar em gente, sentir cheiro de gente e a dor lancinante de um carrinho de supermercado chocando com meu tendão de Aquiles, só assim vou sentir que ainda estou vivo, porque quando acordo de madrugada, no silêncio escuro da noite, hora em que os cães não ladram nem os carros correm pelas pistas da cidade, me assalta a dúvida se permaneço vivo, o que piora quando ouço a sirene de uma ambulância cortando o ar parado e me assombra a ideia de que estou dentro dela sendo encaminhado ao hospital mais próximo, e é quando mais me falta o ar, sinto enorme dificuldade para respirar, estou exausto porque gasto o resto de minha energia para respirar, energia que pode se exaurir a qualquer instante, ainda bem que a caridosa enfermeira ajusta em meu rosto a máscara de oxigênio, mas de que adianta oxigênio se 80 por cento de meus pulmões estão comprometidos com o tal processo inflamatório, aprendi isso no noticiário da tevê que repete a expressão processo inflamatório durante 24 horas por dia, todos os dias, e de repente me sinto sonolento, confuso, é a energia que se esvai, penso, muito sono, muito sono... e então acordo assustado, o pijama ensopado de suor, que sonho, meu deus!

– Isso é pesadelo, cara!


 3.    Desejo

 

– Vontade de ir a um bom restaurante.

– E tirar a máscara?

– Impossível comer com máscara.

– Perigoso, fique em casa.

– E o desejo?

– Dá e passa.

– Eu ia demorar com o cardápio na mão, ler reler treler o menu, chamar o maitre e pedir informações sobre esse  ou aquele prato, como é preparado, se a carne está macia, se o molho pode vir a parte, O peixe e as ostras estão frescos?, demorar-me na escolha das entradas, porque haveria de ser pelo menos duas entradas a tender o jantar ao máximo, então faria a escolha do prato principal, magret de canard ao molho de laranja – é o que sempre pedia ao desembarcar em Paris –, e em seguida a Carta de Vinhos, nenhuma preocupação com os preços exorbitantes após tantos anos de abstinência, peço logo um Brunello, um Biondi Santi de boa safra, para espanto do sommelier, enquanto minha mulher faz o pedido dela – bisteca florentina, para acompanhar o vinho –, a conversa são amenidades em voz baixa para não estragar a refeição, até que chega o interessante momento de a-provar o vinho, Você prova, Não, você prova, Está perfeito, vamos deixá-lo respirar, peço que a garrafa permaneça na mesa, leio o rótulo com prazer, confiro a safra, o teor alcoólico, guardo a rolha de lembrança, Coisa mais cafona, me repreende minha mulher, não ligo, e chegamos  às entradas, uma dúzia de ostras acompanhadas de uma taça de champanhe, depois sardinha escabeche e um cálice de Porto branco seco – enquanto o Brunello respira –,  então o clímax, chegam o pato e a bisteca, estão perfeitos, mal passados como convém, e o vinho está maravilhoso, a conversa agora se resume aos elogios à comida e bebida, que não se pode falar de boca cheia, Hum!, Hum!, Hum!, tudo ótimo, até que o maitre pergunta se queremos sobremesa, Um pain perdu com peras para compartilhar e dois cálices de Sauterne, por fim dois expressos bem quentes.

– Ô cara, vocês bebem, heim!

 

Amarelo

Fotominimalismo




Foto: Avianna, mai 2021
iPhone 11 pro Max

sábado, 29 de maio de 2021

Baixo esplendor

 

 

A tradição começou em 1841, com a publicação do conto Assassinatos da Rua Morgue, de Edgar Allan Poe, em um periódico da Filadélfia, o Graham's Magazine. O autor é considerado o precursor da literatura policial, para a qual muitos torcem o nariz, alegando que se trata de literatura de segunda categoria. Eu adoro!

            Penso que há boa e má literatura, isso sim; um romance policial bem escrito é fonte de grande prazer para mim. E não tenho dúvida de que há bons romances policiais na literatura brasileira.

Luiz Alfredo Garcia-Roza é um bom exemplo, prolífico autor de títulos como O silêncio da chuva, Achados e perdidos, Vento sudoeste, Uma janela em Copacabana, Perseguido, Berenice procura, Espinosa sem saída, Na multidão, Céu de origamis, Fantasma, Um lugar perigoso, A última mulher.

Garcia-Roza foi professor de Psicologia e Psicanálise, tendo deixado importantíssima literatura sobre estas especialidades. Intelectual, humanista, aos 60 anos de idade resolveu escrever ficção, gesto de coragem, liberdade e independência de pensamento – a certa altura ele afirmou que se cansou da Academia –, fazendo enorme sucesso. O Silêncio da chuva, seu primeiro romance, ganhou o Jabuti. 

Seus livros desencadearam grande popularidade do protagonista Espinosa, detetive culto, leitor compulsivo, metódico ao extremo – quem não se lembra dos livros empilhados na parede da sala? – sempre perambulando pelas ruas de Copacabana. Garcia-Roza morreu aos 84 anos, em abril de 2020, e deixou saudade.

Mais recentemente li e gostei muito de autores como Guillermo Martínez (Crimes imperceptíveis), Alberto Mussa (O senhor do lado esquerdo e A hipótese humana), Kucinski (Os visitantes); agora acabo de me deliciar com Baixo esplendor, de Marçal Aquino (Companhia das Letras, 2021).

Assim tem início a história:

 

“Numa das operações que atuou como infiltrado, o alvo era uma quadrilha de ladrões de carga que agia em diversos lugares do país. ... Ele levou quase três meses para conseguir entrar. Começou frequentando um salão de bilhar na parte velha da cidade, onde, de acordo com a dica de seu informante, integrantes do bando costumavam aparecer. Demorou, ele teve paciência, bebeu litros de rabo de galo, pagou inúmera rodadas de cerveja e houve tempo ainda para recuperar a velha forma no jogo de sinuca, paixão de juventude. Até a noite em que se viu compartilhando o feltro verde de uma mesa com dois desses homens, Ingo e Moraes. Usava nessa operação o codinome Miguel, homenagem a um amigo que ladrões tinham matado ao descobrir que assaltavam um policial.”

 

            Marçal Aquino, paulista de Amparo, é jornalista, roteirista, com livros publicados na Alemanha, Espanha, França, México, Portugal, Suíça; após 16 anos retorna ao romance policial, em grande estilo. Baixo Esplendor é sensacional, para quem aprecia o gênero.

 

 

 

 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

sempre o mar

 



sempre volto ao mar

pois respirar é preciso

a água é como ar



Foto: AVianna, em algum lugar no passado

Bom Dia!

Terceira charge do dia

 




Duke


Truco, ladrão!

Segunda charge do dia 


Duke

Mitologia

Charge do dia

 


Laerte Coutinho


Por quê gosto de passarinho?

 


Saí-azul



Foto: AVianna, mai 2021

Por quê gosto de Rothko?






Mark Rothko nasceu em Dunaburgo (1903) e morreu em Nova Iorque (1970);  é considerado um dos mais famosos pintores americanos do período pós-guerra, de origem letã e judaica, classificado como um expressionista abstratoImigrou com sua família da Letónia para os Estados Unidos em 1913, quando ele tinha dez anos. 

Fez seus estudos no Lincoln High School de Portland, depois na Universidade Yale. Em 1929, tornou-se professor de desenho para crianças.

“De acordo com seus amigos, tinha uma natureza difícil. Profundamente ansioso e irascível, podia ser também extremamente afetuoso. É na década de 1950 que sua carreira verdadeiramente se destaca, graças sobretudo ao colecionador Duncan Philips que lhe comprou vários quadros e, após uma longa viagem do pintor à Europa, consagrou uma sala inteira à sua coleção (um sonho de Rothko, que desejava que os visitantes não fossem perturbados por outras obras).

Rothko era um intelectual, um homem extremamente culto que amava a música e a literatura e era muito interessado pela filosofia, em particular pelos escritos de Nietzsche e pela mitologia grega. Influenciado pela obra de Henri Matisse – a quem ele homenageou em uma de suas telas – Rothko ocupou um lugar singular na Escola de Nova York.

Após ter experimentado o expressionismo abstrato e o surrealismo, ele desenvolveu, no final dos anos 1940, uma nova forma de pintar. Hostil ao expressionismo da Action Painting, Mark Rothko (assim como Barnett Newman e Clyfford Still) inventa uma forma meditativa de pintar, que o crítico Clement Greenberg definiu como Colorfield Painting ("pintura do campo de cor"). Em suas telas, ele se exprime exclusivamente por meio da cor em tons indecisos, em superfícies moventes, às vezes monocromáticas e às vezes compostas por partes diversamente coloridas. Ele atinge assim uma dimensão espiritual particularmente sensível.”

“Um livro crucial para Rothko foi O nascimento da tragédia de Friedrich Nietzsche. A nova visão de Rothko tentava dirigir-se às exigências da espiritualidade do homem moderno e às exigências criativas mitológicas, como Nietzsche, clamando que a tragédia grega é uma tentativa humana de compensar os terrores de uma vida mortal. Os objetivos artísticos modernos deixam de ser importantes para Rothko e sua arte terá como finalidade, aliviar o vazio espiritual fundamental do homem moderno; um vazio criado pela ausência de uma mitologia voltada corretamente "ao crescimento de um espírito infantil e (…) para a vida e as lutas de um homem" e para fornecer o reconhecimento estético necessário à liberação das energias inconscientes, precedentemente liberadas pelas imagens, símbolos e rituais mitológicos.

        Rothko se considerava como um "fazedor de mitos". "A experiência trágica fortificante", escreveu ele, "é para mim a única fonte de arte".

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mark_Rothko

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Advinhem qual é a fêmea!

Para a minha querida Gabi



Chega na fonte o Sanhaço-cinzento

desconfiado


Com sede, bebe

da água limpa da fonte



O Sanhaço-verde chega

e já entra no banho


Começa a discussão


O desentendimento... 





... acaba em briga

e a fêmea, que é verde 

grita mais alto...


Fotos: Mercêdes Fabiana, abr 2021



 


Verde que te quero verde

 


Saí fêmea



Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.

 

            Federico García Lorca



Foto: AVianna, abr 2021 

Motoboy da morte

Charge do dia 


João Montanaro

Mussolini em 1933

Política sem palavras





Fotografia brasileira em NY

 

O MoMA, em Nova Iorque, abrirá a primeira retrospectiva de fotografia modernista brasileira nos Estados Unidos: "Fotoclubismo: Fotografia Modernista Brasileira e o Foto-Cine Clube Bandeirantes, 1946-1964". Reportagem de Lúcia Guimarães (24 mai 2021) para a Folha de S. Paulo.

A mostra destaca a produção de German Lorca e Thomaz Farkas, expoentes do Foto Cine Clube Bandeirante. 

“Acompanhada de um catálogo com ensaio da curadora da mostra, Sarah Meister, "Fotoclubismo" apresenta o público do Hemisfério Norte ao primeiro agrupamento de artistas experimentais do meio no Brasil, com nomes como Thomaz Farkas, Geraldo de Barros e Gertrudes Altschul.”

“O Foto Cine Clube Bandeirante era formado na maioria por fotógrafos amadores que tinham outras profissões. Thomas Farkas, que precisou de autorização dos pais para se filiar, aos 15 anos, era uma exceção. O grupo era artisticamente ambicioso, realizava mensalmente concursos internos temáticos e seus membros receberam vários prêmios em salões internacionais.” 


 



‘Ministério da Educação’, fotografia de 

Thomaz Farkas tirada no Rio de Janeiro 

Thomaz Farkas/Reprodução



 



‘Circense’ , fotografia de Julio Agostinelli de 1951

Julio Agostinelli/Reprodução



 


 

Fotografia de German Lorca que estará exposta 

no Itaú Cultural/German Lorca

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/05/moma-abre-primeira-grande-retrospectiva-no-exterior-da-fotografia-moderna-do-brasil.shtml

 

domingo, 23 de maio de 2021

O peso do pássaro morto



 "

– eu soube que a menina que morreu era amiga sua.

– a carla.

– 

 

Sozinha.

 

quando ela volta, seu luís?

 

(ele tirou os óculos

de novo.

o olho de pedra

me assustou um pouco

menos)

 

– ela não volta.

quer dizer,

ela só volta dentro de nós toda vez que alguém pensar nela.

fora, nunca mais.”

 

 

            O fragmento acima pertence ao livro O peso do pássaro morto, de Aline Bei, Editora Nós, Edith, 2017. É o primeiro livro da autora, que com ele venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2018.

            A narradora, personagem quase que exclusiva do romance, distribui suas falas dos 8 aos 52 anos. Me impressionou muito o relato da menina de 8 anos, do qual extraí o trecho acima.

            A obra chama a atenção pela originalidade formal.

            Aline acaba de publicar o segundo romance, Pequena coreografia do adeus, agora pela Companhia das Letras (2021). Vamos conferir.


Amizades

 

Enfim K. aprendeu que há amigos para as horas difíceis, amigos para as horas fáceis, mas não há um amigo para todas as horas, nos momentos de verdadeira solidão.


sábado, 22 de maio de 2021

Ignorância

 



Colonizadores alemães com prisioneiros dos 

povos herero e nama, atual Namíbia, 1904 

Arquivo Nacional da Namíbia

Tomás descobriu depois de velho que tem ignorância ruim mas também tem ignorância boa. 

Foi quando ele leu a notícia no jornal, que entre 1904 e 1907 o então território da África do Sudoeste (atual Namíbia) foi palco do primeiro genocídio do século 20: os colonizadores alemães quase exterminaram os povos herero e nama, com 75 mil e 100 mil mortos, respectivamente 80% e 50% deles. A Namíbia hoje, país do tamanho do Mato Grosso, tem apenas 2,6 milhões de habitantes, ainda consequência da tragédia.

Pior de tudo, os crimes foram praticados pelo mesmo país que na década de 1930 levaria o nazismo ao poder. Quer dizer, pensou Tomás, que aquilo foi um ensaio para o Holocausto? 

Que bom que ele nunca soube desses terríveis acontecimentos, mas agora estava sabendo, e se tornou um homem mais triste por causa disso. Será que saber as coisas faz bem pra saúde? matutou Tomás.

Depois pensou: Que adianta não saber se as coisas já aconteceram mesmo. Solução não há? Tem que haver.

O jeito é virar passarinho.

 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/05/alemanha-prepara-reconhecimento-de-genocidio-africano-que-foi-precursor-do-nazismo.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=comptw

 

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Achados e perdidos


Quando a namorada encontrou no quarto dele uma meia estranha, a desculpa serviu. Mas quando ela encontrou uma cueca...


três sorrisos

Galeria de Família 


o pai,  filha e neta

em um domingo feliz

os sorrisos falam


Na estrada



 
Estrada

 

Esta estrada onde moro, entre duas voltas 

                                               [do caminho,

Interessa mais que uma avenida urbana.

Nas cidades todas as pessoas se parecem.

Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda 

                                               [a gente.

Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a 

                                               [sua alma.

Cada criatura é única.

Até os cães.

Estes cães da roça parecem homem 

                                                [de negócios:

Andam sempre preocupados.

E quanta gente vem e vai!

E tudo tem aquele caráter impressivo que 

                                                [faz meditar:

Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por 

                                   [um bodezinho manhoso.

Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, 

                                   [pela voz dos símbolos,

Que a vida passa! que a vida passa!

E que a mocidade vai acabar.

 

                                              Manuel Bandeira

                                  Petrópolis, 1921 (*)

 

 

Comentários

 

Aos 35 anos, Manuel Bandeira se encontra perdido na vida – “entre duas voltas do caminho” –, em plena estrada, em trânsito portanto. Ainda não encontrou seu lugar: na cidade, se dissolve na multidão, onde todas as pessoas são iguais; na roça, aí sim, pode preservar a própria identidade.

            Desconheço que algum dia Bandeira tenha morado na roça, de modo que a comparação que estabelece no poema entre pessoas da cidade e da roça deve ter outro significado: talvez, estando entre muita gente (na cidade), o poeta se sentisse excluído; ao sentir-se bem e só (na roça), podia ser quem realmente era. A doença de que foi portador, e que carregou por toda a vida, por si só, trazia a marca indelével da exclusão social.

            A diferença se estabelece também entre os cães, em imagem originalíssima: na roça, “andam sempre preocupados” como “homens de negócio”, cientes da própria responsabilidade canina perante a vida. Na roça tudo faz meditar, há solenidade em todas as coisas, seja em um “enterro a pé”, na singela “carrocinha de leite”, até nos cães. É possível que o poeta esteja falando das reminiscências da infância, vivida no Recife, onde nasceu e morou até os quatro anos de idade. 

            O leitor não se iluda, tudo são símbolos no poema, alerta Bandeira. A água do rio corre, corre. A vida passa, passa. A simples repetição de uma palavra imprime movimento de continuidade à frase no fluir do poema e da vida.

            O último verso revela a essência do poeta. Desde seu primeiro poema – Desencanto – escrito em Teresópolis (1912), ele “faz versos como quem morre”. O diagnóstico de tuberculose, ele o recebeu muito cedo como sentença definitiva de morte. Agora, com Estrada, aos 35 anos, ele permanece com a certeza de que a mocidade – ou a própria vida – vai terminar a qualquer momento.

            Ainda assim, o lirismo está mais presente do que nunca na poesia de Manuel Bandeira.

            (Bandeira faleceu no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968, aos 82 anos.)

 

 

 (*) In: Manuel Bandeira – Poesia completa e prosa, Ed. Nova Aguilar, 1990.

domingo, 16 de maio de 2021

A curiosa profissão de Rafael de Assis


Rafael de Assis se orgulhava da profissão que escolhera, especialmente porque, dizia ele, era dos pouquíssimos no ramo em todo o mundo, e verdade seja dita, ele atingira mesmo fama internacional, requisitado por gentes das mais diversas línguas, sobretudo por países de alto nível em tecnologia. Basta dizer, os japoneses eram seu principal cliente.

Tudo começou quando Rafael ganhou do pai uma máquina fotográfica semiprofissional, de funcionamento bastante complicado para um menino de dez anos, e que despertou nele irrefreável fascínio: não pela máquina, mas pelo manual que a acompanhava. Escrito em inglês, o livreto, de formato pequeno, continha exatamente cento e cinquenta e nove folhas, repletas de detalhadíssimas ilustrações, cada número indicando a respectiva função de uma infinidade de botões, localizados na frente, atrás, embaixo, em cima daquela verdadeira obra de arte. Um mistério para o menino de dez anos, o artefato parecia impenetrável, guardado a mil chaves, todas contidas no precioso manual. Bastava decifrá-lo.

As duas únicas palavras do inglês que Rafael conhecia eram The End, porque apareciam sempre nos finais dos filmes de mocinho-e-bandido, O que quer dizer The End, mãe?, É o fim, meu filho, é o fim, respondia a mãe que não sabia muito mais que aquilo. Mas havia em casa um velho Michaelis inglês-português; foi o que bastou para que o obstinado menino – o Champollion do Vale – começasse a traduzir aquele emaranhado de informações. 

Os pais da criança olhavam o novo comportamento do único filho com certa desconfiança, pois até mesmo o futebol com os colegas do Ginásio Estadual Flamínio Lessa ele deixou de lado, debruçado no livrinho, assim que chegava da escola. Continuava a ser o menino cordial de sempre, com boas notas, comportado, respeitoso para com os mais velhos, apenas um pouco mais calado.

Depois de um ano, o trabalho estava concluído, o manual da máquina fotográfica inteiramente traduzido para um caderno de duzentas folhas. A expectativa de Seu Paulo, pai do menino, era que Rafael tivesse encontrado sua vocação, e com ela, uma profissão que lhe garantisse sustento para o resto da vida, quem sabe se tornando até mesmo um reconhecido artista da Fotografia. Ao contrário, Rafa, como era tratado pelos amiguinhos, nunca mais encostou na Minolta. Para surpresa de todos, pediu emprestado ao pai o manual do carro, escrito em francês: um Fiat V8, de 1958! 

            O trabalho recomeçou, nos moldes do primeiro; agora o dicionário era o Larousse. Em três meses o manual estava completamente decifrado. (Seu Paulo pensou consigo mesmo, apenas pensou: Ou é um gênio, ou será um esquizofrênico, Deus nos livre...) Seguiram-se os manuais da máquina de costura Singer, da mãe; da geladeira Frigidaire; do novíssimo eletrocardiógrafo do Dr. Rubinho, cardiologista da cidade, que a fama de Rafael já corria mundo.

            Rafael cresceu, concluiu o curso de Engenharia Mecânica, continuou a ser o rapaz educado de sempre, solícito, prestativo, inteligente, afetuoso com seus pais, grato pela educação que recebera. Casou-se com Beatriz, que conhecera na universidade, ela médica psiquiátrica. Eram felizes, ambos realizados profissionalmente; ela com seu consultório de grande reputação na região, Rafael dono de afamada firma especializada em Confecção de Manuais, com clientes, em sua maioria, do Japão.