domingo, 28 de fevereiro de 2021

gatafunho de poema

Para a Ciça




gato gosta de bagunça

caixa vazia

panos velhos

papeis sobre a mesa onde

refestelado repousa repetidamente

sua imemorial preguiça

vida vagarosamente arrastada

bicho (ou é gente?)

indecifrável

imprevisível

indomável

chamado gato



Foto: Cecília Vianna, fev 2011

S. Bernardo, um monumento literário



 

Aquilo que senti não foi outra coisa senão vergonha ao ouvir Antonio Candido dizer em alto e bom som que havia lido S. Bernardo no mínimo vinte vezes e eu não tinha passado de uma única superficial leitura recém saído da adolescência. Que vergonha!

            Encomendei nova edição, a 105a !!!, da Editora Record (2020), com bela capa de Renan Araujo; devorei o livro em três ou quatro dias e não me lembro de ter encontrado tamanha força em texto algum como em S. Bernardo, exceto em trechos de Guimarães Rosa. Escrita seca, dura, frases curtas, frases rudes, sentimentos rudes, sobra rudeza na terra, nas gentes, no geral.

            Trata-se do segundo romance de Graciliano Ramos (o primeiro foi Caetés), publicado em 1934, considerado por muitos críticos a obra mais importante do movimento modernista brasileiro.

            O cunho político ideológico se revela nas primeiras linhas, na curiosa “divisão de tarefas” para se compor um livro. Graciliano desejava mesmo a transformação da estrutura social vigente nos anos 30. A despeito disso, a caracterização psicológica do personagem principal beira a perfeição, esmiuçada a ponto de sugerir descrição psiquiátrica de caso. 

            Reconheço a inutilidade desse meu texto diante da monumentalidade da obra; faço esse registro apenas como possível estímulo a quem ainda não leu S. Bernardo, ou àqueles que o leram faz tempo e que poderiam relê-lo agora. Antonio Candido tinha razão: um livro para se ler no mínimo vinte vezes!

 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Final do Brasileirão

 

Ao meu amigo Sergio Pripas



Jogadores do Flamengo aguardam
final do jogo do Internacional
Foto: Marcello Zambrana/AGIF

 

Terminou ontem o Campeonato Brasileiro de Futebol, da melhor maneira possível para o sistema de pontos corridos: a decisão ficou para a última rodada. (Quando um time dispara na liderança, as últimas rodadas perdem a graça. Explico essas coisas para minha mulher, que pouco entende de futebol, mas que sabe tudo de otorrinolaringologia.)

            O Palmeiras jogou contra o Atlético de MG, mas preferi ver São Paulo versus Flamengo. E não me arrependi. Há meses o Flamengo vem despontando como o melhor time do Brasil, com ótimos valores individuais e conjunto bem azeitado; o meio de campo com Gerson, e o ataque com Arrascaeta, Gabriel e Bruno Henrique, são o que há de melhor no futebol brasileiro. Merecidamente é o campeão!

            Mas vejam as surpresas que nos pregam o futebol. O São Paulo vem perdendo todas as últimas partidas, jogando mal, sem técnico titular; o Flamengo só precisava de um empate; iniciou o jogo com total domínio sobre o adversário, e perdeu de 2 a 1.

            Na outra decisão, Internacional versus Corinthians, o Inter precisava de vitória simples para ganhar o campeonato; o adversário passa por péssima fase; e o jogo ficou no 0 a 0. Muita incompetência do time gaúcho em não conseguir um único golzinho. (A foto acima mostra o anticlímax da decisão: jogadores do Flamengo na espera do encerramento do jogo do Inter.)

            Mais uma vez prevalece o chavão: futebol não tem lógica. Mas o resultado final confirmou: venceu o melhor!

            O Palmeiras, bem, o Palmeiras venceu a Libertadores, e no próximo domingo joga a primeira partida (melhor de duas) contra o Grêmio de Porto Alegre, pela Copa do Brasil. O time precisa melhorar. Daí esta crônica tão insípida insossa desenxabida.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Ponte de pedra

Fotografia



Tweet de Francisco Ribeiro. Autoria da foto não revelada.

 

A pequena ponte de pedra, no primeiro plano da fotografia, une as duas partes do povoado separadas pelo riacho. Ou se trata de pequena vila ou bairro de uma cidade maior? De onde vem água tão limpa e transparente? Ao fundo, tem-se a impressão que há um grande paredão, parcialmente recoberto por exuberante vegetação, por onde penetram raios de sol. O riacho parece contornar o paredão, serpenteia. Imagino que as casas tenham sido construídas em estreita faixa de terra entre o paredão e a água. Que água é essa? Um grande lago? Braço de mar? O rio do qual o riacho é afluente?  À esquerda, a construção de três andares, parcialmente recoberta pela era, exibe o amarelo das cidades italianas; a ponte se abre em passagem por dentro desse edifício, verdadeira calçada coberta a margear a água. À direita a construção é de pedra, bem antiga; o pequeno lampião, à noite, ilumina a passagem; mais recentemente, o proprietário acrescentou um puxadinho, revestido de cimento, que chama a atenção pelo vermelho da porta rente à ponte; os pintores adoram acrescentar à paisagem o detalhe em vermelho que dá vida ao quadro – o Quarto do artista em Arles, de van Gogh, é exemplo clássico; aplica-se aqui, portanto, a expressão “parece uma pintura”

            Depois de muito observar esta paisagem bateu-me profunda tranquilidade. A curiosidade inicial – onde fica este lugar? – foi substituída pela fantasia: gostaria de morar ali para poder transitar por aquela ponte e, de costas para o paredão, ver onde deságua o riacho. Se encontrasse no caminho, por sobre a ponte, um conhecido, haveríamos de conversar um pouco, falar do tempo, das coisas banais do cotidiano, nada além disso, e cada qual tomaria seu rumo. Caso encontrasse uma linda mulher, a convidaria para uma taça de tinto na adega mais próxima. Divagações.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Há quem prefira urtigas

 



Cada lagarta tem seu gosto;

algumas preferem urtigas.

Provérbio japonês

 

Acima, a epígrafe de Há quem prefira urtigas, de Jun`Ichiro Tanizaki (Companhia das Letras, 2003, tradução de Leiko Gotoda). Assim tem início o romance:

 

“E então? Você vai?”, desde cedo naquela manhã, Misako perguntava ao marido, mas as respostas ora eram evasivas, ora ambíguas. Aliás, ela própria não sabia que atitude tomar e, indecisos, os dois haviam perdido a manhã. Cerca da uma da tarde, Misako tomou banho e aprontou-se para qualquer eventualidade. Em seguida, sentou-se em mudo incentivo perto do marido que, jogado sobre o tatame, ainda lia o jornal; mas nem assim consegui fazê-lo definir-se.

– Que acha de tomar um banho, ao menos? – perguntou.

– Hum...”

 

            A cena se passa no Japão, década de 1920: Misako e Kaname, que já não encontram amor no casamento nem sentem atração física um pelo outro, decidem se separar. Por razões obscuras até mesmo para ambos, não conseguem pôr fim ao próprio casamento. O  autor expõe assim os dilemas da velha tradição japonesa em confronto com a nova geração influenciada pelo ocidente.

O casal estabelece então uma série de regras de comportamento afetivo, na expectativa de que, com o tempo, ocorra a separação definitiva e pouco traumática. Enquanto isso, Kaname visita a prostituta Louise, e Misako pretende refazer a vida ao lado de Aso, seu amante. 

Personagem interessantíssima é o velho pai de Misako, amante do tradicional teatro de bonecos, e que vive com a concubina Ohisa, trinta anos mais jovem. É ele quem revive as os costumes japoneses mais tradicionais, que o autor faz questão de enfatizar em seus livros, de modo a valorizar e até mesmo opor a tradição nipônica aos novos hábitos do ocidente. 

Ao final do romance, o pai de Misako, bem velho, arroga a si o direito de opinar sobre o destino do casal, que não tem alternativa senão ouvi-lo. Fica patente o respeito que aquele povo tinha pelo parente mais velho àquela época.

(Foi inevitável para mim comparar este aspecto com as relações familiares em nosso meio, nos dias de hoje, onde o mais velho não é ouvido; suas opiniões não interessam ao mais jovem; ele já não tem valor como pessoa; o velho precisa lutar, se assim o desejar, para ao menos preservar o respeito dos mais novos. Não li isso em lugar algum; escrevo assim porque tenho experimentado isso.)

Sou fã de Jun`Ichiro Tanizaki que, com seu estilo bem cuidado, me revela um outro tipo de viver, de sentir, de pensar.




 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Primeira providência

Charge do dia 


Montanaro

Mata Atlântica de Sebastião Salgado


 

Fazenda Bulcão no ano 2000, antes do início 

do projeto de restauração

Foto: Sebastião Salgado

 



Fazenda Bulcão, em Aimorés, foto de 2013,

mais de uma década depois de ter início

processo de restauração do ecossistema. 

Foto: Sebastião Salgado

 

 

Entrevista de Sebastião Salgado para Giovana Girardi, para O Estado de S.Paulo (21 fev 2021), revela que ele e sua mulher Lélia Wanick herdaram a fazenda que tinha sido do pai do fotógrafo no fim da década de 1990. “A propriedade, que em seu auge chegara a abrigar 2 mil cabeças de gado, não tinha mais condições para dar suporte nem para 200. A água tinha praticamente desaparecido como resultado da retirada de toda a vegetação nativa de Mata Atlântica.”

“A maior parte da fazenda Bulcão, em Aimorés (na divisa de Minas Gerais com Espírito Santo), foi transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com o objetivo de restaurar aquele ecossistema, e o casal criou o Instituto Terra, hoje uma das principais iniciativas de restauração da Mata Atlântica no País.” 

O Instituto criou viveiro, plantou mudas e expandiu o plano para a degradada vizinhança no Vale do Rio Doce. “Em mais de 20 anos, 6 milhões de mudas de árvores nativas da Mata Atlântica foram produzidas. Os projetos de recuperação em andamento atingem 2,1 mil hectares e 2 mil nascentes.” 

“Com isso tudo em mente, o Instituto Terra lança nesta segunda, 21, a campanha Refloresta, com música inédita do Gilberto Gil de mesmo nome, com o objetivo de incentivar esse projetos. A campanha aproveita também como mote o fato de que em 2021 começa a chamada Década da Restauração, nomeada pela ONU para promover atividades de restauração de ecossistemas e reflorestamento.”

 

Empolgado com o projeto, Salgado conclui: “Hoje, até onça, que tinha desaparecido da região nos anos 1930, voltou. Os macacos também voltaram. Quando já tínhamos água, pensamos em reintroduzir jacarés. Mas tínhamos uma bióloga grávida que teve um pesadelo de que o jacaré ia comer o bebezinho dela. Falamos para ela ficar tranquila, abandonamos a ideia. Mas passados alguns meses, um dia veio um funcionário correndo mostrar uma foto no celular. Era um jacaré chegando sozinho, todo empoeirado. Veio pela estrada, pelo mato. Algum passarinho, algum inseto contou para ele que ali tinha uma área protegida para ele viver e ele voltou.”

Grande Sebastião Salgado!

 

https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,sebastiao-salgado-lanca-campanha-com-musica-de-gil-por-restauracao-florestal,70003623220

 

Orelha-de-pau




estação das águas
cresce a orelha-de-pau
na úmida mata


Foto: AVianna, fev 2021, matinha.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Por que seguir a Ciência?

 

“Por uma série de problemas, que vão da metodologia à estrutura das carreiras e das publicações, boa parte das conclusões de trabalhos científicos que são feitos atualmente está errada. Nas contas de John Ioannidis (Stanford), a maioria das pesquisas em medicina não merece crédito. Para Jeffrey Leek (Universidade de Washington), os erros alcançam só 14% dos estudos. Os números melhoram na física, mas pioram nas ciências sociais e na psicologia.

Se as coisas são tão precárias, por que seguir a ciência? Creio que a ciência é um pouco como a democracia. É um sistema confuso, cheio de ruídos e distante de qualquer ideal. Ainda assim, é o melhor sistema que temos, se não para encontrar verdades, para produzir conclusões provisórias que dependem mais da realidade do que de nossos desejos. Não é pouco.”

Hélio Schwartsman

 

            A despeito das reais limitações expostas acima por Schwartsman, o método científico traz em si uma grande virtude: ele busca a verdade, encontra o erro, reconhece-o como tal, e torna a buscar a verdade, incansavelmente. Não verificamos tal virtude na Religião, que é feita de dogmas, verdades imutáveis por definição, fonte perene do fundamentalismo tão pernicioso de algumas crenças.

            Não se trata de voltar à velha disputa Religião versus Ciência, que não leva a coisa alguma. Trata-se de reconhecer o real valor da Ciência em tempos de pandemia. Isolamento social, uso de máscaras e vacinação constituem prescrições da Ciência. Por que então não são obedecidas por grande parte da população de nosso país, até mesmo quando a pandemia se agrava? O decantado Leblon ignora a Ciência, de dia na praia, à noite nos bares e boates. Não será por falta de informação, o nível sócio-econômico lá é dos melhores, a maioria é de gente educada; por acaso desprezam a vida? 

            Em Israel, judeus ultraortodoxos teimam em realizar casamentos e funerais com grandes aglomerações. “O que é mais importante?”, indagou Esti Shushan, ativista ultraortodoxa do movimento pelos direitos das mulheres, depois de ver imagens do funeral. “Ir ao funeral e estudar a Torá? Ou continuar vivo?” 

            Entre nós, o que é mais importante, acreditar na Ciência ou aferrar-se à ideologia política de falsos profetas?

            A crônica deste domingo de Hélio Schwartsman para a Folha de S.Paulo, A fé na Ciência, bate na mesma tecla dos últimos meses. Parece que é preciso mesmo repetir repetir repetir.

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/02/a-fe-na-ciencia.shtml

 

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,funerais-ultraortodoxos-em-massa-durante-pandemia-alimentam-tensoes-em-israel,70003621806

 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Folha centenária

Mais 47 cenas de um romance familiar



Ofir em Cabo Frio

 

A Folha de S. Paulo completou ontem 100 anos de existência, o que não é pouco num país como o nosso, que não cultiva tradições e padece cronicamente de desvalida economia. Parabéns aos responsáveis pela façanha.

            O que desejo mesmo é contar a história da presença desse objeto – o jornal –, em nossa família. Desde menino pequeno, vivendo no Vale do Paraíba, vejo meu pai cumprir seu ritual diário de ler o jornal. À mesa, ele abria o exemplar de O Estado de S. Paulo e, cuidadosamente, virava página após página, mantendo o caderno impecável alinhado direito, como se não houvesse sido tocado. Finda a leitura, dobrado o jornal, ele podia ser devolvido à banca, como se não fora lido; mas agora era a vez do restante da família. 

            Enquanto morávamos no interior, o Estadão era o preferido do pai, bairrista empedernido. A família se mudou para o Rio de Janeiro; então alegava ele dificuldade para encontrá-lo nas bancas; virou casaca, adotou o Jornal do Brasil, um grande jornal àquela época, meados dos anos 60. Seu Suplemento Literário, com crônicas e poemas de um tal de Carlos Drummond de Andrade, nunca pôde ser suplantado pelas Ilustradas, Ilustríssimas e Cadernos B da vida.

            O ritual persistia e ai daquele que ousasse abrir um caderno que fosse antes do pai; a reação vinha furiosa diante da verdadeira profanação. Nossa mãe, para contrariar (diga-se, o pai contrariava também), lia O Globo, periódico chinfrim à época. (Hoje é jornal de respeito.) Aos domingos, à hora do almoço, a tertúlia de sempre: qual o melhor, o JB ou O Globo?

            Ao chegar em Brasília, nos idos de 73, procurei continuar lendo o JB, o que se mostrou impossível: a cidade era uma província, oferecendo apenas dois jornais locais, ambos sofríveis. Desde então adotei a Folha como preferido, e a leio até hoje, virtualmente durante a semana, no indefectível papel aos sábados e domingos. Nos fins de semana recebo o Estadão, porque não se pode, nem se deve apagar a infância.

Boas companhias

Política sem palavras 


Foto: Reprodução/Instagram

Longe dos homens



 

Um bom título valoriza um filme; é o caso de Longe dos Homens (Loin des hommes), dirigido por David Oelhoffen e estrelado por Viggo Mortensen (Daru) e Reda Kateb (Mohamed), cuja estreia ocorreu em 2014. O filme é inspirado (e não baseado) no conto de Albert Camus intitulado O hóspede, do volume O exílio e o Reino (Record, 1997). (Está no TeleCine.)

            A história se passa na Argélia, ainda colônia francesa, no período que antecedeu a Guerra da Independência, anos 50. Em meio à paisagem seca, desértica, árida ao extremo, localiza-se a escola onde leciona e mora o professor Daru, um prédio baixo, de bom tamanho, no meio do nada. A fotografia é belíssima, apesar do nada. No filme somos logo apresentados à classe: espaçosa sala de aula, carteiras bem postas, o quadro-negro, um grande mapa da África, os pequeninos atentos à fala do afetuoso  professor. (No conto de Camus a presença dos alunos é apenas sugerida.)

            Daru, embora argelino, descende de família espanhola, e por isso é rejeitado tanto pelos franceses quanto pelos colonizados; ele é determinado em seu objetivo:  alfabetizar as crianças daquele ermo. O  trabalho é violentamente interrompido por um certo militar que traz até a escola um árabe como prisioneiro e incumbe o professor de conduzi-lo à cidade mais próxima onde será julgado pelo assassinato de um primo.

            A princípio o professor recusa a estúpida tarefa, discute com o militar, sugere ao prisioneiro que fuja, quando afloram interessantes dilemas éticos e filosóficos entre os personagens. (O conto acaba por aqui.) Daru decide levar o prisioneiro, e a partir de então diretor e roteirista criam narrativa repleta de ação com participação dos rebeldes argelinos, e ao final, do exército francês. Violência, ameaça constante de morte, ética e filosofia estão presentes em todo o transcorrer do drama.

            (Repete-se, às tantas, a velha desculpa para ações criminosas, em especial para os crimes de guerra: “Eu apenas cumpro ordens”, informa o oficial francês.)

Ao final, como que por milagre, Daru e Mohamed são libertos; o professor retorna à escola; o árabe escolhe seu destino. O filme termina com o aviso que aquela será a última aula – a guerra está para começar –, o que enche de lágrimas os olhos das crianças.

            No início do texto informei que Longe dos homens não se baseia no conto de Camus, pois ele se refere apenas aos minutos iniciais do filme, a apresentação da paisagem e dos protagonistas. Mas é extraordinário que um diretor de cinema, provavelmente com a ajuda de um bom roteirista, que ambos possam se inspirar em Camus e elaborar história tão rica em aspectos humanos e históricos, a partir de um conto quase singelo.

Um raro exemplo (ou nem tão raro assim) do cinema que supera a literatura. 

            

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Des-uso

Charge do dia


 Gomez


Inspirado em um sujeito que esqueci o nome.

Etimologia

 

no suor do rosto

o gosto

do nosso pão diário


sal: salário



                            José Paulo Paes

             In: em tempo escuro, a palavra (a)clara






quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

escoa a vida

 

escoa a vida

me agarro a fiapos

tênues frágeis fios

de esperança

conduzem antes à morte

que à lida

despenco no abismo

habitado por Caos

fundo infindo

por onde escoa a vida

para o mineral

princípio de tudo

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Função do esquecimento


“Os cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach sustentam que nossos cérebros foram projetados para não guardar detalhes justamente para maximizar a capacidade de fazer generalizações.”

 

O trecho acima está na crônica de ontem (12 fev 2021) de Hélio Schwartsman: O esquecimento como virtude, para a Folha de S. Paulo. 

O ponto de partida para o tema foi a recente decisão do STF em não reconhecer o direito ao esquecimento. Ainda bem que foi assim. Porém, alerta o articulista: “Daí não decorre que o esquecimento não seja, tanto quanto a memória, um ingrediente importante para o bom funcionamento da sociedade e do próprio cérebro humano. A razão pela qual humanos não temos uma memória perfeita não é de bioengenharia. Existe uma síndrome rara, a hipertimesia, que faz com que seus portadores se lembrem de praticamente tudo — algo próximo ao que Jorge Luis Borges descreveu no conto "Funes, o Memorioso".”

            O mais interessante dessa história, e que destaco aqui como epígrafe, é a descoberta de que é preciso haver espaço no cérebro para as abstrações; inundado por fatos, resta ao cérebro apenas lidar com eles, perdendo a capacidade de construir generalizações. Isso me parece uma grande novidade. Costumamos dizer: é preciso haver tempo para pensar. Agora acrescentamos: é preciso haver espaço para pensar.

            (Conheci de perto uma pessoa que exibia memória espantosa. Guardava as placas de carros que via no estacionamento de onde trabalhávamos; cpfs para ele eram fichinha; os registros de prontuários milagrosamente guardados. Ao longo do tempo essa característica se agravou de tal modo que, quando não havia fatos para memorizar, ele os inventava, e a partir de então os tomava por verdade; surgiu daí um mitômano.)

            Schwartsman conclui de modo brilhante: “A vida social também depende de esquecimentos, que às vezes chamamos de perdão.” Sob tal perspectiva, a palavra perdão aparece despida de qualquer conotação religiosa, significando tão somente uma certa função cerebral, a de oferecer espaço para o bom convívio social. 

            Em tempo, é preciso reconhecer a importância da ficção. Borges antecipou isso tudo no espantoso conto citado por Schwartsman! O final de Funes, o memorioso, foi trágico!

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/02/o-esquecimento-como-virtude.shtml

 

 

 

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Relatos do mundo

 

 

Com o estranho  título Relatos do mundo, a sugerir algo mais sofisticado, a Netflix tenta ressuscitar o velho e agonizante western, espécie de gênero que parece desafiar tantos diretores de cinema.

            O argumento baseia-se em Rastros de ódio, do grande John Ford. Relatos contém todos os detalhes que se repetem invariavelmente em cada filme de mocinho: um homem bom em luta permanente contra a humanidade má, os revólveres antigos tipo colt, espingardas enormes, cavalos, carroça, a roda da carroça que se quebra, caminhadas debaixo do sol escaldante de um deserto infinito, a sede mortal e a água do cantil que acaba. É a deliciosa repetição desses detalhes que fazem o western sobreviver.

            O filme dirigido por Paul Greengrass tem tudo isso de forma bem dosada, nada de grandes arroubos, o ritmo lento acompanhado de uma fotografia espetacular. (O espectador não pode exigir muito não. Tem que gostar e pronto.)

            Há algo extraordinário no filme, o ótimo desempenho de Tom Hanks, cuja versatilidade possibilita a encarnação de um mocinho diferente, ético acima de tudo, cujo papel empresta título ao filme. Acompanha-o na história uma menina muito branca e demasiadamente loura (Helena Zengel), perdida no mundo, completamente desamparada, à mercê dos homens maus, com atuação brilhante. Quando a munição da espingarda de caça acaba, é ela que surge com solução originalíssima!

            Em tempos em que os machões estão em baixa, Hanks é o oposto de John Wayne, quase um intelectual, mas que também sabe lutar e matar os bandidos.

            Senti falta de uma boa trilha sonora, elemento fundamental nesse tipo de filme.

            Com todas as limitações, para quem aprecia o gênero e sabe ser generoso, vale a pena assistir Relatos do mundo

            

 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Melhor legenda

 

 Presidente Jair Bolsonaro arrisca corrida

em pista de atletismo em Cascavel (PR)

Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República

 

 

Este blog mostrou ontem a fotografia do presidente de república (sempre com minúsculas) correndo aparentemente de forma alucinada em uma pista de atletismo; o marcador da postagem foi Política Sem Palavras.

            Em seguida fui surpreendido pela notícia de que a Folha de S. Paulo havia desafiado seus leitores para que colocassem legenda na alucinada foto.

Eis o ranking das melhores legendas:

 

1. Leite condensado te dá asas! 

Ronan Wielewski Botelho, 35, filósofo, Londrina (PR)

 

2. Campeão dos sem nexos rasos. 

Julião Villas, 43, artista, Nova Lima (MG) 

 

3. Bolsonaro inaugura nova modalidade no atletismo, os 230 mil mortos sem barreiras. 

Marcelo Vieira Fernandes, 43, professor, São Paulo (SP)

 

4. Corre que a vacina vem aí! 

Edson de Oliveira, 46, cozinheiro e empresário, Passo Fundo (RS)

 

            Eu poderia acrescentar:

 

# Mãêêê!!!!

 

            São todas legendas engraçadas, de fato. Ainda prefiro minha postagem inicial: Sem Palavras.

Enquanto muitos da plateia riem, o que vemos é um homem ensandecido; sua expressão facial me sugere misto de desespero, euforia, sofrimento, talvez dor pelo esforço físico, a busca infindável por aprovação, medo de que isso não ocorra, e tantos outros sentimentos que não consigo imaginar. É um retrato da Loucura, onde prevalece o narcisismo patológico.

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2021/02/que-legenda-voce-daria-para-essa-foto-de-bolsonaro-correndo.shtml

 

 

Que imagem!

A foto do dia


Ontem, dia de seu aniversário, minha filha Paula anunciou, Vou me dar um presente, vou mergulhar e fotografar cavalos-marinhos! Eis o resultado!




Em Búzios! 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Focos de civilização

Ao meu amigo Sergio Pripas

 

“As condições são muito difíceis. Elas exigem que a gente não se conforme com elas. Nos campos de concentração, Walter Benjamin criava clubes de leitura, de debates. Ele criou um foco de civilização no meio da barbárie. Acho que somos capazes disso. As condições são muito graves e, por isso, elas exigem muito. É hora de começar a inventar. Nós vamos ter que dar o melhor de nós”.

 

As palavras acima são da psicanalista Maria Rita Kehl para o site Tutaméia.

A ideia de criar “focos de civilização” para enfrentar a miséria que vivemos em nosso país me parece essencial. Alguns pensam (sonham) que a humanidade pode estar melhorando ao ser açoitada pela peste; não há evidências de que isso esteja ocorrendo, ao contrário, a violência e o egoísmo prosperam, em um frenético salve-se quem puder. Os espertinhos furam fila de vacinação.

Kehl cita Walter Benjamin, o que é muito apropriado. Penso imediatamente em Olivier Messiaen. Quando a França entrou na Segunda Guerra Mundial, Messiaen foi convocado a servir, e logo capturado pelos alemães; levado ao campo de concentração Stalag VIII A de Görlitz, lá sobreviveu por um ano. Nas condições mais adversas, Messiaen conheceu três outros músicos no campo, um violoncelista, um violinista e um clarinetista, todos manejando precários instrumentos. Com o acréscimo do piano tocado pelo próprio Messiaen, ele compôs o Quatuor pour la fin du temps. A peça foi tocada no próprio campo, na presença de oficiais nazistas e prisioneiros, no dia 15 de janeiro de 1941, sob pesada neve.  Os músicos que participaram da estréia foram Henri Akoka (clarinete), Jean le Boulaire (violino) e Étienne Pasquier (violoncelo). Abaixo, o convite impresso para o concerto, com o carimbo oficial do Campo.

 


 


Olivier Messiaen (1908-1992)

 

            Agora aprendo com Kehl traduzir em palavras fenômeno tão complexo ocorrido em um campo de morte, improvável, quase impossível, e por isso mesmo magnífico: “foco de civilização no meio da barbárie”. 

            Em seguida me veem à mente os atuais concertos da Osesp na Sala São Paulo, os músicos separados por chapas de acrílico, os que podem, incluindo o maestro, usando máscaras, o número reduzido de participantes para evitar aglomeração, oferecendo concertos gratuitos pela Internet, muitas vezes sem a presença de uma plateia. Isso é criar foco de civilização.

            Meu amigo Sergio, a quem dedico este texto, participa de um clube de leitura em São Carlos – SP, em atividade ininterrupta há mais de 25 anos. Outro foco de civilização.

            Acredito que o idealismo e o desejo de difundir a língua pelos esperantistas, dentre os quais meu irmão Paulo, que desempenha papel de destaque nacional e internacional, estejam criando foco de civilização pelo mundo afora. O Esperanto é falado em todos os continentes.

            As chamadas lives oferecidas por instrumentistas e cantores da música popular brasileira são manifestações de resistência contra aqueles que desejam diminuir a importância da arte, e portanto focos de civilização.

            Meu amigo Moisés, artista nato da palavra, ao decidir tirar seus textos da gaveta e torná-los públicos no blog (https://moisestitolf.blogspot.com), para alegria da multidão de fãs que ele carrega vida-a-fora, tratando de filosofia, literatura, poesia, e da vida como ela é, cria mesmo sem saber um foco de civilização.

            Os exemplos são inumeráveis, uns de maior projeção, outros menos, e atenuam de certa forma o estado de barbárie instituído pelo atual governo e seus fanáticos seguidores. Os focos de civilização não precisam de armas de fogo; utilizam-se da palavra, das artes, do livre pensar, do desejo do conhecimento e da informação. 

A civilização haverá de prosperar sempre.               

 

 

https://tutameia.jor.br/e-preciso-criar-focos-de-civilizacao-em-meio-a-barbarie-diz-maria-rita/?fbclid=IwAR3nBH1Ccgo-_C0g3BHL-br4pKce4XSJPuNYpo3w_dyzkC5BuMGBEAhVgDM

 

 

Stonehenge sob a neve

A foto do dia 



Stonehenge sob a neve


Poucas vezes me emocionei tanto em minha vida, e de forma aparentemente inexplicável, quando nosso velho Ford Fiesta iniciou a descida de uma elevação e pudemos avistar de longe o monumento de Stonehenge. Passados 35 anos daquela experiência, a emoção perdura. A impressão talvez fosse de que estávamos revivendo a pré-história da humanidade.

Fundamentalismo

Charge do dia 


Leandro Assis e Triscila Oliveira

para a Folha de S. Paulo

Parábola das batatas

 

Impressionado com o que lera em Saint-Exupéry, o jovem procurou o Sábio da Aldeia.


– Sábio, é verdade que “é melhor descascar batatas pelo amor de Deus que edificar catedrais”?


O Sábio:

– Meu filho, prefiro batatas assadas com casca.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Broadway Boogie Woogie

Meus quadros favoritos 

Piet Mondrian (1942–43)


Terroir existe?

 

Solo, microclima, variedade da uva e ação do homem interferem 
na qualidade e personalidade dos vinhos. 
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

 


A coluna Le Vin Filosofia, de Suzana Barelli, para o Estadão (9 fev 2021) traz o interessante título Terroir existe? 

A palavra terroir (sem tradução para o português), significa “o conjunto do solo, do microclima, da variedade plantada e da ação do homem em um vinhedo”. Um bom terroir produz vinhos de qualidade, característicos da pequena região onde suas uvas são cultivadas.

Afirma Barelli: “Os monges cistercienses foram os pioneiros no terroir na Borgonha, região que atualmente utiliza o termo climat, ainda mais preciso. Durante a Idade Média, por séculos, os monges observaram e anotaram o comportamento de cada variedade cultivada em cada parcela de vinhedo. Conseguiram definir que a chardonnay, nas brancas, e a pinot noir, nas tintas, eram as variedades para o solo e o microclima da Borgonha. Mais que isso: perceberam que conforme o local em que era cultivada, resultava em vinhos diferentes, mesmo se vinificado da mesma maneira. A explicação estava no terroir.”

Pesquisa efetuada pela Catena Institute of Wine, da vinícola argentina do mesmo nome, conseguiu comprovar, oito séculos depois, que o terroir realmente existe e pode ser identificado. “O trabalho “Perfil sensorial e fenólico dos vinhos malbec de distintos terroir de Mendoza, Argentina”, publicado na Scientific Reports, da Nature, criou um modelo para medir o terroir, a partir da analise química de vinhos e que permitiu identificar de que parcela (ou terroir) vem cada um deles.”

“Ao todo foram comparadas três safras, as de 2016, 2017 e 2018, em um total de 201 vinhos, todos malbecs vinificados da mesma maneira e vindos de quatro níveis diferentes de terroir, dos maiores, como as regiões e os departamentos de Mendoza, aos menores, com foco em 23 parcelas, cada uma com menos de um hectare.”

“O modelo aplicado para estas pequenas parcelas nos permite identificar corretamente o vinho que vem de cada uma delas, com uma porcentagem entre 83% e 100% de confiança. Isso é fantástico e nos permite confirmar que o que chamamos de terroir existe”, afirma Fernando Buscema, um dos autores do estudo.

A descoberta é importante para o consumidor porque permite comprovar a origem do vinho, além de combater fraudes. 

Conclui Buscema: “A ciência pode conviver com a arte de fazer vinho. É compartilhar os segredos do artista, que elabora o vinho, para que mais produtores tenham a possibilidade de produzir grandes vinhos por séculos”. Tudo em nome do terroir.

Quem aprecia um bom vinho há de gostar desta descoberta.

 

 

https://paladar.estadao.com.br/noticias/bebida,terroir-existe,70003609510