casas brasileiras
bananeiras no quintal
a vida nos trópicos
Foto: AVianna, fev 2021, quintal de casa
Aqueles menos afeitos às manhas do futebol dirão, Que jogo feio!
Feia mesmo a decisão da Libertadores da América ocorrida ontem no emblemático Maracanã entre Palmeiras e Santos. Mas só podia ser feia; esta é uma característica quase que infalível de toda decisão de campeonato ou até mesmo de Copa do Mundo, o jogo amarrado, truncado por sucessivas faltas, bruto, mas nem tão bruto que acarrete expulsão de jogadores, com predomínio das estratégias sobre o jogo aberto, franco, bonito de se ver. Antes de vencer, não se pode perder. O que conta é o resultado! Passado algum tempo, ninguém mais dirá que o jogo foi bonito ou feio, mas todos se lembrarão que o Palmeiras venceu, com todos os méritos, a Libertadores de 2020.
(Na Copa de 1970 o jogo entre Brasil e Inglaterra era um divisor de águas; quem ganhasse teria grande chance de ser campeão. Jogo duríssimo, amarrado no meio de campo, pouca criatividade, embora o jogadores fossem de alto nível, lances ríspidos – o tal jogo feio. Em dia memorável, o Brasil venceu por 1 a 0 e acabou levando o caneco! Em minha opinião, essa foi a disputa que mais bem ilustra a ‘feiura de uma decisão’.)
Na comparação individual entre os jogadores de ambas as equipes, o Palmeiras entrou em campo ontem com time mais bem qualificado. Isso pouco ou nada importa em uma decisão. Agora, a garra com que os times entram em campo, isso importa muito. Penso que o Palmeiras jogou com mais vontade de vencer. (Marinho, grande artilheiro do Santos, considerado o melhor jogador desta Libertadores e que poderia decidir a partida, sumiu em campo, bem marcado pela defesa alviverde.)
Final de campeonato é decidido quase sempre no detalhe – este é mesmo um dos jargões do futebol. O jogo de ontem entrava nos acréscimos quando o técnico do Santos, homem experiente, segurou a bola na lateral do campo, retardando a cobrança pelo adversário. Marcos Rocha, lateral do Palmeiras, reagiu, criou-se tumulto, Cuca acabou expulso, o que aparentemente tirou a concentração dos jogadores do Santos. Cobrado o lateral logo em seguida, Rony centrou com improvável perfeição a bola para a área do Santos e encontrou o mais improvável ainda Breno Lopes bem colocado, que desferiu belíssima cabeçada, encobrindo o goleiro John Victor, dando o título ao Palmeiras. Um a zero em decisão de Libertadores é goleada!
Aos afeitos às manhas do futebol, decisão é jogo de xadrez. Ontem tivemos um lindo jogo, porque meu time venceu!
Angustiado, poucas horas antes da decisão, ele atinou:
– Por quê tanto sofrimento?
Então foi ao cinema.
Ao final da vida são tantas as coisas para as quais não tenho competência que só me resta lamentar. E de que serve lamentar?
Uma delas é não tocar um instrumento. Ouço música erudita desde a infância, por influência materna. Meu pai estudou piano; a mãe tocava harmônica – sanfona mesmo. Os filhos não receberam qualquer estímulo para aprender a tocar um instrumento. Talvez não tivessem vocação musical, porque por determinação própria nenhum deles tomou esta iniciativa. Aos 40 anos tentei aprender flauta transversal, achei difícil, desisti. Resta a frustração.
Ao menos eu poderia escrever sobre música, que continuo ouvindo diariamente. Nem para isso tenho competência. Porém, vez por outra bate a vontade de escrever sobre a Bachiana Brasileira n. 1 para oito violoncelos, de Heitor Villa-Lobos, com o único intuito de convencer o eventual leitor a ouvir esta obra prima.
A peça é composta de três movimentos. O primeiro, a Introdução (Animato), tem início com os violoncelos apresentando tema complexo, como se estivéssemos ouvindo uma orquestra inteira; seguem melodias fáceis, muito lindas, conjunto que o compositor denominou Embolada. Penso (sinto) que se trata apenas de preparação para o segundo movimento, os cellos terminando em graves profundos.
Segue-se o Prelúdio (Andante), com o nome de Modinha. A música então se eleva aos céus, é triste, quase ingênua, melancólica mesmo, sublime porque faz aflorar sentimentos de paz, de amor por toda a humanidade. Este segundo movimento contém a essência do que são as Bachianas Brasileiras, com o estilo muito expressivo chamado de “escada”, agudos e graves se alternando continuamente, quando Villa mais se aproxima de Bach. Música grandiosa. (Fica claríssima aqui minha insuficiência literária para descrever tanto a música quanto a emoção por ela despertada.)
O terceiro movimento (Fuga: Un poco animato) recebe o nome de Conversa. São os cellos alegres, efusivos, vibrantes, alternando agudos e graves, a tal conversa de instrumentos, penso que com a sensação do dever cumprido, após terem tocado o Prelúdio. O final é majestoso!
A gravação de que disponho é a do The Pleeth Cello Octet, da Hyperíon, de 1987. Me parece magnífica.
Se porventura esta pobre crônica chegar a algum eventual leitor, espero que ele não deixe de ouvir a Bachiana Brasileira n.1 para oito violoncelos de Villa-Lobos. Que ouça pela vida toda.
Miguel Sanches Neto escreve a resenha do Um dia chegarei a Sagres, de Nélida Piñon, para a Edição 249 (jan 2021) de O Rascunho. Destaco pequeno trecho, que comento em seguida.
“Narrado em primeira pessoa masculina, o romance se constrói a partir de retomadas constantes de fatos da infância do narrador e da História, que se misturam. O recurso de uma espécie de estribilho narrativo marca toda a obra, que se afasta dos meios da prosa para se aproximar dos meios da poesia. É em uma língua portuguesa excessivamente literária, que se quer maior do que os fatos, em uma épica contemporânea, sem deixar de cair no caricaturesco, que Nélida explora a identidade portuguesa enquanto idioma. A preferência pelos pronomes em posição de ênclise, o uso desbragado de metáforas e o tom heroico das frases buscam dar ao livro uma monumentalidade para evocar o valor textual da tradição camoniana. Assim, os capítulos se sucedem com um pequeno avanço do conflito, preso a passagens já narradas, que retornam constantemente. Com isso, percebemos que a viagem de ida é uma viagem de volta pela memória, e o que se afasta é também aproximação.”
Confesso que ainda estou com o livro de Nélida na cabeça, um mês depois de terminada a leitura. Há coisas boas e coisas não tão boas no livro, penso; ao mesmo tem não me julgo capaz de uma crítica bem fundamentada. Por isso busco opiniões diversas, como esta que aqui apresento.
Destaco no trecho de Sanches Neto a frase: “É em uma língua portuguesa excessivamente literária, que se quer maior do que os fatos”. Se compreendi bem, concordo plenamente; a escrita é tão importante que parece não necessitar da história, da narrativa do protagonista feita na primeira pessoa.
Mateus sai do norte de Portugal e para em Lisboa, onde nada acontece; apenas a língua “excessivamente literária” permanece. Em Sagres, pouca coisa acontece. No retorno a Lisboa é preciso terminar o livro, já com 500 páginas, e então a narrativa se adensa, ganha corpo, apresenta algo de concreto, mesmo que se trate de sentimentos. Concordo que a autora abusa dos “pronomes em posição de ênclise”.
Mais não reencontrei na boa resenha de Sanches Neto que valha a pena comentar.
Em crônica de 23/jan/2021 para a Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman interroga: Bolsonaro é louco?
Penso que todos nós algum dia já fizemos esta pergunta, diante de tantos desvarios, disparates, manifestos em atos e palavras, oriundos do presidente.
Segundo grupo de psiquiatras, afirma Schwartsman, ele “apresenta comportamentos compatíveis com critérios de transtornos de personalidade descritos tanto no CID-11 como no DSM-5. O que se destaca são traços de personalidade narcísica e paranoide, evidenciados por falta de empatia, agressividade, desconfianças (com o sistema eleitoral, por exemplo) e alguma desconexão com a realidade.”
Circula hoje nas redes sociais vídeo de ontem com fala do presidente, com as seguintes palavras: "Vai pra puta que o pariu, porra. Imprensa de merda essa daí. É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, vocês da imprensa essa lata de leite condensado.”
Minhas desculpas aos mais sensíveis ao uso do palavrão, mas preciso reproduzir as palavras do presidente, para responder à pergunta que empresta título à crônica de Schwartsman: “Bolsonaro é louco?”
Em Hamlet, a fundamental peça de William Shakespeare, Polônio, pai de Ofélia, desconfiado da sanidade mental de Hamlet, estabelece longo diálogo com o príncipe, que aqui resumo:
Hamlet: “Palavras, palavras, palavras.”
Polônio: “Qual a questão, meu senhor?”
Hamlet: “Em quem?”
Polônio: “Quero dizer, a questão sobre que estais lendo, meu senhor.”
Hamlet: “Calúnias, senhor; pois este malandro de satírico diz aqui que os velhos têm barbas grisalhas, faces enrugadas, olhos que excretam âmbar espesso e goma de ameixeira; diz ainda que têm ampla falta de discernimento, a par de fraquíssimos jarretes: embora eu creia nisso tudo vigorosa e intensamente, não me parece bem que esteja assim posto por escrito, pois vós mesmo, senhor, havíeis de chegar à minha idade... se pudésseis retroceder como um caranguejo.”
Polônio (à parte): “É loucura, mas há método nela.”
(Hamlet, Abril Cultural, 1976, tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.)
Agora posso responder à questão formulada por Schwartsman: “É loucura, mas há método nela.”
Todos sabem, Hamlet havia traçado plano para vingar o assassinato do pai, e se fazia de doido para enganar a corte. Hoje, nós somos a corte.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/01/bolsonaro-e-louco.shtml
Tropas soviéticas libertaram Auschwitz em 27 de janeiro de 1945
“Em 27 de janeiro de 1945, tropas soviéticas entraram cautelosamente em Auschwitz.”
“Primo Levi, um dos mais famosos sobreviventes, estava deitado em uma tenda médica com escarlatina quando os libertadores chegaram ao campo de extermínio nazista, na Polônia.
Soldados lançavam "olhares estranhamente desconcertados aos corpos espalhados, às cabanas surradas e aos poucos de nós ainda vivos", escreveria mais tarde Levi, judeu italiano que relatou o período em que passou ali em É Isto Um Homem? (1947).
"Eles não nos cumprimentaram ou mesmo sorriram. Pareciam oprimidos não apenas pela compaixão, mas pelo... sentimento de culpa de que tal crime pudesse existir."
"Nós vimos pessoas magras, torturadas, exaustas", descreveu o soldado soviético Ivan Martynushkin sobre a libertação do campo de extermínio. "Podíamos ver por seus olhares que estavam felizes de serem salvos daquele inferno."
Em menos de quatro anos, a Alemanha nazista matou ao menos 1,1 milhão de pessoas em Auschwitz. Quase 1 milhão eram judeus.”
A assunto tem sido recorrente neste blog, tanto mais que o blogueiro adora listas. Refiro-me ao costume que se difundiu amplamente, o de xingar o presidente; além de enriquecer o vocabulário do leitor, serve para extravasar nossa indignação diante dos desmandos, da insanidade, de tanta incompetência. Quando o casal presidencial inaugurou a exposição pública dos trajes usados na posse, este blog apresentou a lista de epítetos cabíveis.
https://loucoporcachorros.blogspot.com/2020/12/qual-melhor-legenda.html
Hoje quem traz sua lista é o grande Ruy Castro, para a Folha de S.Paulo: Novos xingamentos contra Bolsonaro - A pecha de corruptor, covarde e traidor se junta às outras para definir o pior presidente do país (26 jan 2021). Ruy escreve:
“Desde sua posse, Jair Bolsonaro já foi chamado de cretino, grosseiro, despreparado, irresponsável, omisso, analfabeto, homófobo, mentiroso, escatológico, cínico, arrogante, desequilibrado, demente, incendiário, torturador, golpista, racista, fascista, nazista, xenófobo, miliciano, criminoso, psicopata e genocida. Os autores dessas desqualificações são cidadãos comuns que escrevem mensagens para os jornais, produzem memes e entopem as redes sociais. Está tudo registrado e seria divertido ver o governo processar tal multidão.”
Ruy acrescente: “Mas é inútil, porque nada ofende Bolsonaro. Ele se identifica com cada desaforo. Afinal, foi quem rebaixou o Brasil ao nível de estrebaria de quartel... Nos últimos dias, Bolsonaro ganhou dois novos epítetos populares. Um, o de covarde, ao jogar a culpa por seus crimes nos ministros que ele mesmo escolheu e doutrinou. Outro, e que só agora começa a ser percebido por seu próprio público, o de traidor, ao se pôr de quatro diante dos países, pessoas e instituições que ele ordenou odiar.”
E a lista cresce sem parar!
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/01/novos-xingamentos-contra-bolsonaro.shtml
A postagem teve mais de 32 mil curtidas e 11 mil comentários, com participação de “especialistas em linguística concordando com o youtuber e muitos leitores revoltados com os argumentos usados por ele na discussão.”
De antemão, me declaro incompetente para discutir o assunto. Só posso falar de minha experiência pessoal. Criamos, eu e meus irmãos, o hábito da leitura com Monteiro Lobato – leitura fácil, interessantíssima, a prender nossa atenção como se aquilo fosse realidade e não ficção, marca que perdurou pela vida inteira. No ginásio, tivemos o melhor professor de português possível, de nome Afonso, rígido, a cobrar a memorização de um poema por semana e a leitura de um livro (aprovado por ele) por mês. Líamos então Machado de Assis e Álvares de Azevedo.
Era chato? Às vezes era chato. Mas matemática, história, latim, música, e tantas outras disciplinas também poderiam ser enfadonhas em determinados momentos. Não deixamos de estudá-las por isso.
Entrar em contato com Machado já era importante, mesmo que não pudéssemos alcançar um cisco de sua genialidade.
Porém, minha experiência pessoal só vale para mim, não serve de argumento contrário ou a favor do tema em discussão. Me amparo em autoridade no assunto: no ensaio “O Direito à Literatura”, Antonio Candido já explicava a importância do ensino curricular e democrático da literatura nas escolas:
“Por isso é que em nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. [...] Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.
Nada a acrescentar. Mas um bom professor pode ajudar muito!
Durante a semana, ele cozinha o trivial. Aos fins-de-semana, a chef assume e ele lava os pratos.
Há médicos e médicos, porque antes de tudo vem a pessoa.
Mineiro, natural de Uberaba, Clóvis era um desses seres especiais, que escolheu a Medicina por pura vocação. Pessoa simples, pouco afeito às artes em geral e em particular às sutilezas da literatura, fez questão de preservar suas origens no trato com as pessoas e no modo de falar.
Eu, que o conheci bem – trabalhamos juntos –, guardo dele bela lembrança: nunca conheci profissional que conseguisse estabelecer melhor relação médico-paciente. A comprovação desse fato está na extraordinária história que passo a contar.
Outro dia atendi em meu consultório a senhora H., acompanhada do marido; ela, perto dos 50 anos, nervosíssima, agitada, assustadiça, qualquer movimento meu era visto como uma ameaça à sua integridade física, queixava-se de surdez na orelha esquerda; o marido, paciente, calmo, sorridente, por certo acostumado com o desempenho teatral da esposa.
Depois de examiná-la, indiquei uma simples lavagem de ouvido, para remoção de cerume. A mulher foi às nuvens; chorou desbragadamente, gritou, esperneou, imprecou aos céus que se me abatesse uma desgraça qualquer, e por fim, sobrou para o marido, Eu não disse que não queria vir nesse médico?
– Não permito de maneira nenhuma, assim ela encerrou o assunto.
– Já teve filhos, senhora H.? perguntei calmamente.
– Tive dois, um casal.
– E como foi isso? Parto normal?
– Sim, partos normais.
– A senhora, como se comportou?
– Doutor, sou uma predestinada porque tive a fortuna de ser atendida pelo Dr. Clóvis, mineiro de Uberaba, o senhor por acaso ouviu falar?
– Sim, ouvi falar. Bom médico?
– Aquilo é que era médico, o resto é conversa. Desculpe doutor, sem desfazer do senhor. Vou lhe contar uma história que é a prova de que estou falando a verdade.
E a senhora H. iniciou longo relato sobre o primeiro parto, o segundo parto, as inúmeras vezes em que foi socorrida pela incomparável competência do Dr. Clóvis, e como era a última consulta da tarde, ouvi com paciência e interesse o caso do meu falecido amigo, de saudosa memória.
– O que eu mais apreciava no Dr. Clóvis era o carinho com que me tratava! Um belo dia, chamei ele em casa por causa de forte gripe. Ele chegou logo depois da hora do almoço, ouviu minhas queixas, me examinou com o cuidado de sempre, mediu pressão, tomou pulso, escutou coração, pulmões, palpou a barriga (ai que vergonha!), meticuloso, calmo, seguro de si. Passou a receita, me tranquilizou, nada de grave; prescreveu repouso.
A consulta estava por terminar quando resolvi lhe oferecer delicioso licor de jabuticaba que tenho guardado com carinho, a especialidade da casa. Dr. Clóvis aceitou de pronto! E tomou o primeiro cálice, pediu mais, o segundo, o terceiro... Conversa vai conversa vem, bebeu toda a garrafa do meu precioso licor, o senhor acredita?
Estávamos em meu quaro, onde me examinou e onde tenho confortável sofá. Pois não é que Dr. Clóvis pediu licença para repousar um pouco, deitou-se, e quando acordou já era noite fechada. Assim era o meu médico, gente como a gente. Que Deus o tenha, Louvado Senhor Jesus Cristo. Nunca vi outro igual, sem desfazer do senhor, é claro.
Já mais calma, consegui fazer a lavagem da orelha da senhora H., sem maiores percalços. Fui bastante delicado nas manobras, mas nada que se comparasse ao meu falecido amigo Clóvis. Aquele sim, era um bom médico!
“Escrever me ensinou a ler. Experimentar a solidão da tela em branco me fez admirar Pessoas, Hildas e Quintanas, mas também despertou a minha inveja em prosa e verso. Milhares de frases, metáforas e ideias que deviam ser minhas já estavam publicadas.”
Moisés Tito Lobo Furtado
O texto acima faz parte da belíssima crônica intitulada Por quê, que inaugura o Blog do Moisés! Uma grande notícia!
Para quem não o conhece, Moisés é uma pessoa extraordinária, pela doçura, pela capacidade de sentir e pensar, pela empatia congênita com que se relaciona com as pessoas. Ele lê muito sobre filosofia, de modo que está sempre a nos inquirir, provocar, desafiar mesmo, o que em muito nos enriquece.
Moisés gosta de ler e escrever, como assinala no parágrafo acima, frequenta oficina de escrita, se esmera na escritura, luta com as palavras, edita e reedita o texto infinitas vezes, exigente consigo mesmo. Há muito espero que os textos dele saiam da gaveta e sejam publicados, para a felicidade geral da nação!
Moisés é um homem de rara sensibilidade. Conhecê-lo foi um privilégio para mim. Ser seu amigo é uma honraria!
Agora temos o blog dele:
https://moisestitolf.blogspot.com/2021/01/por-que.html
A Cruzada das crianças, de autoria do francês Marcel Schwob (1867-1905), originalmente publicado em 1896, é uma pequena obra-prima!
O livro recria, em prosa poética, a lendária cruzada das crianças em 1212 rumo a Jerusalém, em busca do Santo Sepulcro. O autor apresenta o relato independente de oito “testemunhas”, todos ligadas ao evento: o goliardo, o leproso, o Papa Inocêncio III, três criancinhas, o escrevente François Longuejoue, o calândar (monge maometano), a pequena Allys e o Papa Gregório IX. Eis o que este último pronunciou:
“Deus trouxe para si as crianças que participaram das cruzadas, graças ao santo pecado do mar; seres inocentes foram massacrados, e seus corpos encontrarão asilo. Sete barcos naufragaram no recife do Recluso: construirei a igreja dos Novos Inocentes nesta ilha, onde nomearei doze prebendeiros. E tu me devolverás os corpos de minhas crianças, mar inocente e consagrado; tu as levarás às praias da ilha; e os prebendeiros acomodarão os corpos nas criptas do templo; e acenderão com os óleos sagrados lâmpadas perpétuas, para mostrar aos viajantes devotos estes pequenos esqueletos brancos estendidos na noite.”
Antes de algumas palavras sobre o que é fato e o que é lenda nessa história, ressalto a bela edição composta pela Editora 34 (2020), com prólogo de Jorge Luis Borges, ilustrações de Fidel Sclavo, e primorosa tradução de Milton Hatoum, da Coleção Fábula. O projeto gráfico é de Raul Loureiro, com belíssima capa a representar “o mar devorador que parece inocente e azul, mar de ondulações suaves orlado de branco como uma veste divina”, nas palavras de Gregório IX.
A Cruzada das Crianças, por Gustave Doré
A Cruzada das Crianças resultou de um conjunto de fatos esparsos, dando origem às mais variadas fantasias populares que se verificaram por volta do ano de 1212. Segundo o historiador Peter Raedts (The Children's Crusade of 1212, Journal of Medieval History, 3 (1977), nesse ano ocorreram “Duas movimentações de pessoas na França e na Alemanha. Algumas semelhanças entre as duas facilitaram que fossem mais tarde agrupadas como uma única história.”
“No primeiro movimento, Nicholas, um pastor de apenas 10 anos, da Alemanha, conduziu um grupo através dos Alpes até à Itália, na primavera de 1212. Cerca de 7 000 chegaram a Génova no final de agosto. No entanto, como as águas do Mediterrâneo não se afastaram para eles poderem passar como prometido, o grupo separou-se. Poucos conseguiram regressar a casa [alguns tornados escravos] e nenhum chegou à Terra Santa.”
“O segundo movimento, segundo Frederick Russell (Children's Crusade, Dictionary of the Middle Ages, 1989), foi conduzido por um jovem pastor de 12 anos chamado Estêvão de Cloyes que em junho de 1212 afirmou ser portador de uma carta de Jesus para o rei de França. Tendo conseguido atrair uma multidão de mais de 30 000 pessoas, dirigiu-se para Saint-Denis onde foi visto a praticar milagres. Aí, terão recebido de Filipe II de França, aconselhado pelos sábios da Universidade de Paris, ordens para dispersar, que a maioria terá seguido. Nenhuma das fontes contemporâneas aos eventos menciona planos para a multidão se dirigir a Jerusalém.”
A partir desses fatos, com alguma sustentação histórica, cronistas de várias origens criaram a lenda A Cruzada das Crianças. Talvez os participantes sequer fossem crianças, pois na mesma época surgiram várias migrações de pobres por toda a Europa, bandos chamados de pueri (do latim rapaz). Mais tarde o termo pueri foi traduzido para crianças.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzada_das_Crianças#cite_note-2
A pintura rupestre de Leang Tedongnge (Indonésia)
que mostra o desenho de um javali da espécie ‘Sus celebensis’,
pintado há pelo menos 45.500 anos.
“A caverna de Leang Tedongnge, localizada na ilha indonésia de Celebes, abriga a obra de arte mais antiga do mundo conhecida até agora: um javali de 136 centímetros de comprimento por 54 de altura, pintado há mais de 45.500 anos, conforme revela um artigo publicado nesta quarta-feira na revista Science.” Informa Juan Miguel Hernández Bonilla (14 Jan 2021), para El País.
Caverna Leang Tedongnge na ilha de Célebe na Indonésia.
Galeria de Família
segurando no colo a bisneta Nara!
Um poema sem palavras!
Provável fotógrafo: Paulo Viana, em 1978.
Meus quadros favoritos
“Thomas Cole (1801-1848) foi um pintor inglês naturalizado norte-americano. É considerado o fundador da Escola do Rio Hudson, um movimento artístico norte-americano que floresceu em meados do século XIX, caracterizado pelo realístico e detalhado retrato de paisagens da natureza.” Wikipédia
Garrote vil era o nome de um instrumento de consumação de pena de morte na Espanha. Consistia em um torniquete de couro que garroteava o pescoço do condenado e era apertado lentamente. Na ditadura franquista esse instrumento foi aprimorado e a tira de couro foi substituída por um anel de metal que era apertado por uma tarraxa que o carrasco torcia mais lentamente, dependendo de sua disposição de aumentar o sofrimento ou permitir uma morte mais rápida. Isso aconteceu na Espanha até a morte do General Franco e o advento da democracia espanhola.
No Brasil, este instrumento foi resgatado em Manaus, com uma aparência diferente, pela falta de oxigênio que possa garantir uma oxigenação adequada à vida das pessoas acometidas pela Covid 19 e em estado grave. Em Manaus, o carrasco são as autoridades que não se preocuparam com a vida alheia, muito menos com um sofrimento terrível, ao se ter uma asfixia lenta, gradativa e inexorável, que vai matando tão lentamente como o carrasco franquista que escolhia quem iria sofrer mais ou sofrer menos.
Pois é! O Planeta inteiro sabia que isso poderia acontecer. O Planeta inteiro se preparou, menos o Brasil. Compete ao Poder Público Federal, leia-se Presidente e seus Ministros, a responsabilidade pela saúde e vida das pessoas nacionais brasileiras, não se trata de apenas uma necessidade humanística, mas de um imperativo constitucional. Está na Constituição Federal em seu “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (in verbis).
Quem instrumentaliza o Estado Brasileiro é o Presidente da República, da mesma forma que quem instrumentaliza o fazer cirurgia é o cirurgião. Nem adianta tentar culpar o anestesista ou quem quer que seja, a culpa será sempre daquele a quem é outorgada a prerrogativa do fazer, o domínio do fato.
A falta de oxigênio em Manaus exteriorizou a face mais cruel de uma governança sanitária desprovida de pudores, caracterizada por uma incompetência abissal, pois, na maioria das vezes, é depositada nas mãos de quem nem sabe muito bem o que é saúde e quais são os determinantes dela. São indicações de uma política de compadrio e de cumplicidade, na maioria dos casos, o que possibilita as iniquidades que se perpetuam diante dos olhos foscos por uma catarata moral dos tais representantes do povo que se aboletam nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativa e no Congresso Nacional, não para atender os anseios e necessidades do povo, mas para se manterem sobrenadando nas águas pútridas da politicalha brasileira.
Enquanto em Manaus as câmaras de gás de Hitler são recuperadas, disfarçadas de UTI, os responsáveis pelo cumprimento do Artigo 196 da Constituição da República permanecem em silêncio de catedral sem missa ou de cemitérios a meia noite.
Onde está o que se diz presidente desta república? E seu ministro da doença, que mesmo estando na cena do crime não identificou nenhum sinal de sangue, deve ser porque Covid 19 só sangra dentro do corpo e o sangue não é exteriorizado; a morte não ocorreu por bala de fuzil, mas por algo que o ministro nem sabe o que é, por ser portador de um obstáculo epistemológico que o impede de tomar consciência do fato.
Há um silêncio lá pelas bandas do Congresso Nacional, porque eles estão muitíssimo preocupados em eleger seus subalternos para comandar as duas casas do legislativo. Para eles, isso é infinitamente mais importante do que vidas humanas perdidas em sofrimento intenso e inimaginável. Espero que sejam garroteados e asfixiados pelos votos nas próximas eleições para, ao menos, sentirem um pouco do dissabor da derrota.
Há um terceiro e majestosos silêncio; o do Judiciário. Por onde andam os falastrões que se assumem como guardiões da liberdade? Mas de que serve a liberdade após uma morte em sofrimento atroz? Ao menos as almas dos falecidos encontrarão a paz no encontro com Deus!
Entretanto há um silêncio muito doloroso para mim, o silêncio da afasia dolosa do Conselho Federal de Medicina, encastelado em algum lugar desta República, escudados em uma ética literária, mas desprovida de veracidade, porque diante do cenário escandaloso e após cobrança pública de muitos médicos respeitados neste País, emitiram uma nota água com açúcar, um delírio do óbvio, como diria Nelson Rodrigues, falaram sobre o nada, pois tudo o que foi dito só demonstra uma cumplicidade obsequiosa.
Falta-me ar, sufocado pela impiedade de muitos agentes públicos, mal respiro. Suspiro incessantemente tentando entender o morticínio antecipadamente prevenido, mas simplesmente desconsiderado, catástrofe moral, mundialmente sem igual, enfim... falta o ar, falta o a... falta o ... falta... falt... fal... fa... f.....
José Pedro Rodrigues Gonçalves (15/01/2021)
Médico, meu colega de turma, aos 50 anos de formados pela UEG, hoje UERJ.
“A despeito da minha triste rebeldia, atribuo formas disformes às migalhas de pão que se espalham sobre a mesa. Enquanto acato os produtos da terra, que são poucos na casa, como que vivo de farelos. Sem eles, contudo, não estaria aqui, nesta colina de Lisboa, uma das sete existentes, pela qual perambulo amparando-me nas paredes das casas para não tombar. Após deixar as terras do avô e instalar-me em Lisboa, em Sagres, e depois no mundo, aqui retornei. Quem sou sem as ruinas das urbes humanas e sem os pedaços da minha existência? Quem sou sem estas histórias, meus escombros?”
O trecho pertence a Um dia chegarei a Sagres, o último livro de Nélida Piñon (Ed.Record, 2020). Desejo comentá-lo, porém não me sinto apto para tal. Quem poderia fazer a crítica desse livro hoje no Brasil? Uns poucos, estou certo disso. Eu então, quem sou eu? Nélida é uma acadêmica, premiadíssima, Embaixadora Ibero-Americana da Cultura. Falta-lhe apenas o Nobel de Literatura. Quem sabe?
A pequena amostra acima nos permite indagações. “Atribuo formas disformes”: se eu escrevesse isso em meu blog, imediatamente meu irmão me enviaria mensagem, me corrigindo. “Acato os produtos da terra”: um novo sentido para o verbo acatar? “Como que vivo de farelos”: por quê não apenas Vivo de farelos, suprimindo o horrível como. “Ruinas das urbes humanas”, “meus escombros”: linguagem sofisticada, eis aqui minha principal indagação. Mas Nélida pode.
O livro é escrito na primeira pessoa: “Nasci no século XIX, no norte de Portugal, e não sei o que significa ser parte desta nação. Que benefícios os reis, assentados no trono, de diversas linhagens, nos concederam além de agrilhoar o povo aos seus caprichos.”
Quem fala é Mateus, filho de puta, de pai desconhecido, criado pelo avô, lavrador em pequeno povoado do Minho. O menino recebeu precária educação, a não ser por um certo professor que lhe incutiu fantasias a respeito do Infante D. Henrique, desbravador de mares sem fim. São essas as ferramentas de que Mateus dispõe: machado, enxada, arado, a mão calosa, o braço forte. E muita fantasia para relatar suas memórias, até chegar a Sagres.
O filho de Joana, a puta, escreve como se fosse um erudito. Mais que isso, com estilo próprio, original, com direito a altas filosofias. Mas Nélida pode.
(É verdade, o escritor tem liberdade para escrever como bem desejar.)
A primeira passagem por Lisboa, vindo da aldeia onde nasceu, é apagada, nada acontece além da sofisticada linguagem. Até que Mateus, enfim, chega a Sagres! Aí surgem personagens curiosas, estranhas, pinçadas do gênero humano, cada qual destinada a representar certo papel na vida de Mateus: dono de hospedaria, a mulher avara do dono de hospedaria, uma obsessiva que cuida da sobrinha paralítica em cadeira-de-rodas, o alfarrabista que coleciona documentos históricos (cultor da verdade), e finalmente um africano dionisíaco.
O estilo da escrita permanece o mesmo, cultíssimo, as palavras escolhidas a dedo. Sai da boca de Mateus: “Eu sofria com o mistério que lhe emoldurava o rosto e o empalidecia, e nunca decifrava. Quantas vezes desviei a mirada sob a vigília da tia que nem por uma fração de tempo permitia-me pousar os olhos na sobrinha. No quarto, livre para sonhar, simulava ter próxima a esfinge de Leocádia.” (Esfinge ou efígie? Mas Nélida pode.)
Ainda Mateus, após ter adotado um cão apelidado Infante: “Passamos a ser três, nós dois e o avô. Uma matilha de humanos e bicho, iludidos com o ânimo do amor.” Bonito!
Arrasta-se a história, até que Mateus volta a Lisboa, um velho desvalido. Num ato de misericórdia, encontra Amélia, outra desvalida, originária do Oriente, e amparam-se mutuamente na pobreza extrema. O livro ganha em emoção – talvez pela primeira vez – com as palavras que Mateus dirige a Amélia, e que ela mal pode compreender. Parece que ele delira, e então conta sua verdadeira história.
Em minha minguada opinião, um bom livro.
Piquete, Picos dos Marins
Imagem, https://www.cidadeecultura.com
O governo do Estado de São Paulo acaba de criar o Monumento Natural Mantiqueira, protegendo o que resta da Mata Atlântica no estado.
A área protegida tem pouco mais de 10 mil hectares. Ela fica na Serra da Mantiqueira entre os municípios de Cruzeiro e Piquete, e será gerida pela Fundação Florestal.
Hoje, diz o site da SOS Mata Atlântica, “restam apenas 12,4% da floresta que existia originalmente. É preciso monitorar e recuperar a floresta, além de fortalecer a legislação que a protege.”
São vários os tesouros do Monumento Natural Mantiqueira como o Túnel da Mantiqueira, palco de uma das principais batalhas da Revolução Constitucionalista de 1932. Outros dois destaques dentro da área protegida são os Picos do Marins e do Itaguaré. Dois pontos mais altos de São Paulo, o Pico do Marins tem 2.427m, e o de Itaguaré 2.308m.
O pico do Itaguaré
Imagem, http://www.araucariaecoturismo.com.br/
João Lara Mesquita, autor desta reportagem (12 jan 2021), informa que a Serra da Mantiqueira foi o local escolhido para o primeiro parque nacional do País, o Parque Nacional do Itatiaia criado em 1937 abrangendo os municípios de Itatiaia e Resende no Estado do Rio de Janeiro, e Bocaina de Minas e Itamonte no Estado de Minas Gerais.
Na região está inserida a bacia Hidrográfica do rio Paraíba do Sul, curso de água que banha os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O rio atravessa a região do Vale do Paraíba e é formado pela confluência dos rios Paraitinga e Paraibuna’.
Cachoeira Curiaco, Piquete
Imagem, https://www.mercadinhopiratininga.com.br/
“Ao todo foram catalogadas durante os estudos para a criação da nova UC mais de 400 espécies. Só de aves são 294. Mas ainda há 56 tipos de anfíbios, 40 de mamíferos e 15 espécies de peixes, entre outros.”
Parabéns ao governo do Estado de São Paulo.
Estou a falar da região onde cresci e que amo até hoje.
https://marsemfim.com.br/monumento-natural-mantiqueira-nova-uc-de-sao-paulo/