Acabo de
ler a magnífica crônica publicada no Blog do Paulo com o instigante título O que faz um bom livro?
Paulo
relata que ganhou um certo livro de presente – presente de grego, segundo o
próprio amigo que lhe presenteara – e que, a despeito de se tratar de autor
renomado, parece que o tal livro não agradou, nem ao amigo nem ao Paulo. Para o
primeiro, trata-se de “livro chatíssimo”. Para o segundo, “livro pesado,
monótono, prolixo, repetitivo, em muitas páginas cansativo e até sonífero”.
Com tantos predicados, (“o autor é
conceituadíssimo, quase unanimidade nas letras nacionais, domina à perfeição a
língua, com elegância no estilo e perspicácia no traçado de ideias originais; o
tema é do mais alto interesse e a pesquisa histórica, impecável; a edição, se
não é luxuosa, é sóbria e agradável”), e mesmo assim o livro não agrada, torna-se
inevitável a pergunta: “O que faz um bom livro?”
A
inspiradora crônica do Paulo aguçou-me o desejo de contar o sucedido comigo
dias atrás, naturalmente sem a mesma maestria e arte do ilustre esperantista,
mas que tem certa analogia e poderá adicionar algum elemento interessante à
crítica literária.
Há meses
venho acompanhando pelos jornais a notícia de que estava próxima a publicação
de Machado,
de autoria de Silviano Santiago; a cada visita que fazia à livraria (sempre a
mesma), indagava pelo livro, ainda por vir à luz. O próprio autor informava que
não se trata de biografia propriamente dita, mas de mistura de ficção,
história, ensaio, alguns dados biográficos dos últimos anos da vida do grande
Machado de Assis, autor por quem ele sempre teve a máxima admiração, enfim, os
ingredientes são de dar água na boca, ainda mais que tratados pelo
conceituadíssimo Santiago, que há anos vem trabalhando na obra.
Até que
dei de cara com Machado, bem à minha frente, logo na entrada da livraria, e o
coração disparou, do mesmo modo que disparava quando eu esperava que a loja
abrisse para comprar o último romance de José Saramago, no dia do lançamento;
levava o livro para casa, iniciava imediatamente a leitura, emocionava-me
sempre, e tanto melhor o livro mais triste eu ficava ao terminá-lo; restava-me
esperar o próximo lançamento do português. E assim foi com o livro de Santiago,
amante que todos somos do Mago do Cosme Velho.
Paulo,
que prima pela elegância, não deu nome aos bois; para o objetivo da crônica
dele não vinha mesmo ao caso nomear, e acho pouco provável que se trate do
mesmo livro: a coincidência reside em outro aspecto: Na Grande Decepção!
Findo o
primeiro capítulo, incrédulo, fechei o livro, lembrei-me de meu avô que gostava
de uma certa expressão, passadiça nos dias de hoje, Que maçada! (Saiba o leitor
que maçada também pode significar o duro golpe desfechado com uma maça!
Aplica-se ao caso em questão, de modo figurativo, é claro.)
Aquilo
não estava acontecendo, pensei, o livro iria melhorar, alguma história
interessante haveria de surgir em se tratando de Machado de Assis, só poderia
vir algo de muito bom, o autor estava apenas no aquecimento, nos preliminares, que
eu tivesse paciência, coisa que tenho cada vez menos com o passar da idade,
diferentemente do Paulo, praticamente um herói, pois chegou ao final do livro
dele (um outro livro, repito), homem disciplinadíssimo que é, um verdadeiro Jó,
um asceta, o que lhe possibilitou que escrevesse a brilhante crônica a que fiz
alusão no início, e não esta bosta de crônica que agora escrevo, puto-da-vida
por perder meu precioso tempo com o Machado do Santiago, a ponto de
começar a perder as estribeiras e começar com os palavrões costumeiros do Louco por cachorros, Mas que merda!
Passei
pois ao segundo capítulo: a mesma xaropada! Com a agravante que surgiram novas
personagens, todas desinteressantíssimas, ocupando o espaço que eu esperava ser
dedicado ao velho Machado, meu herói.
Terceiro
capítulo: mais do mesmo! Quarto capítulo: ah! não, assim não dá! Enlouqueceu o
Natal ou enlouqueço eu? Senti que eu havia perdido alguma coisa, uma passagem
sutil, algumas entrelinhas, faltava-me compreensão, eu não estava à altura do
que lia, isso mesmo, a deficiência era toda minha, o livro devia ser bom,
precisava voltar ao princípio, proustianamente em busca de algo perdido.
Fechei o
livro e tornei a abri-lo. Foi aí que me dei conta de uma ilustração em cores, a
Transfiguração, do glorioso Rafael, logo na terceira folha, a qual tinha me passado
despercebido. Assim, sem qualquer comentário adicional, sem qualquer
explicação, apenas Transfiguração,
Rafael.
Veio-me
um estalo! Fui ao segundo capítulo de Machado, página 49, e reli o seguinte
trecho:
“A arapuca foi armada pela minha admiração ao romancista
Machado de Assis e, como pardal cheio de fome à cata de alpiste numa manhã de
inverno carioca, sou seduzido pelo volume que recolhe as cartas trocadas nos
últimos anos de vida.
As dez digitais dos meus dedos, já
semiapagadas pela velhice da pele, ganham dez olhos de sondar e explorar o
livro antes de lê-lo. Apropriam o significado das páginas e mais páginas antes
que sejam percorridas pelo sol da atenção. As duas mãos se transformam em
memória epidérmica das palavras impressas. Num desses espantosos passes de
mágica, que vêm desde sempre norteando, ilustrando e reestruturando minha
própria vida, as cartas escritas e recebidas pelo famoso escritor brasileiro do
século XIX se interiorizam entranhas adentro em processo inédito de
metamorfose. No novo milênio, encontram abrigo sob as asas da minha imaginação.
Transfiguro-me. Sou o outro sendo
eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908.”
Aí está!
A pintura de Rafael retrata
a transfiguração de Cristo no Monte Tabor, levitando entre a Terra e o Céu,
acompanhado dos discípulos Pedro, Tiago e João, com suas vestes brancas,
banhado em luz, falando com Moisés e Elias, personagens do Antigo Testamento,
revelando assim a sua essência divina. Da mesma maneira, Santiago, que se utiliza
de expressões como “passes de mágica”, “processo inédito de metamorfose”, “asas
da minha imaginação”, confessa que se transfigura, sendo o outro e sendo ele
mesmo: o deus Machado de Assis e o filho Silviano, feito da mesma divina
essência, agora são um só. Silviano é Machado de Assis!
Em outras
palavras, Silviano delirou. E como ele não pode ser Machado de Assis – ninguém
o será jamais –, perdeu-se na prosa delirante desconexa boba chata
melodramática repetitiva sonífera insuportável.
Ou deliro eu? Quem sou eu para criticar
Silviano Santiago, que por três vezes ganhou o prêmio Jabuti, recebeu o prêmio
Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. “Afinal, o autor é conceituadíssimo,
quase unanimidade nas letras nacionais, domina à perfeição a língua, com
elegância no estilo e perspicácia no traçado de ideias originais; o tema é do
mais alto interesse e a pesquisa histórica, impecável...”: reproduzo as palavras que Paulo empregou para descrever de
forma tão brilhante o autor do livro que ele leu (um outro livro, não o meu, nunca
é demais repetir...).
O mais
provável é que minha explicação do porquê o livro não é bom – o delírio do autor – seja mesmo fruto de um
delírio meu. Ando delirando ultimamente, coisa da idade, agora que passei dos
70, pois não é que pensei ter assistido pela tevê a troca do prêmio de melhor
filme no Oscar desse ano?, pois não é que um ministro do Supremo mandou soltar
um conhecido assassino?, pois não é que os políticos vão acabar tornando o
caixa 2 algo normal?, pois não é que o Trump descobriu atentado terrorista na
Suécia?, e assim se desenrola a não-trama de Machado, o autor pulando
de galho em galho, falando de gente desconhecida, gente chata, só não fala de
quem deveria ocupar todas as páginas do alentado volume, prolongando-se “em
repetições e prolixidade inexplicável”, como bem afirmou Paulo sobre o livro
que ganhou do amigo-da-onça (diga-se que a construção paulina está
corretíssima, inexplicável é a prolixidade, embora se ele escrevesse em repetições
e prolixidade inexplicáveis também estaria corretíssimo, o plural referindo-se
a ambos os substantivos, muito bem empregados por sinal), o autor pulando de
galho em galho, repito como repete Santiago incansavelmente, exausto fica o
leitor, dai a César o que é de César porque tantas vezes vai o pote à fonte que
um dia ele se quebra, daí que acabada a galinha, acaba o resguardo, agora não
resta mais dúvida de que eu deliro.
Confesso,
interrompi a leitura no quarto capítulo, impaciente, rabugento, puto-da-vida
(repito), cuspindo cobras lagartos lagartixas calangos gambás fétidos, pulei
para o último capítulo na esperança de que Santiago descrevesse com a arte que
lhe é peculiar a morte de Machado de Assis. Nem isso. A mesma chatice, a mesma
prolixidade, a mesma falta de rumo, fluxo, caminho, estrutura, o que Paulo
chamou de “falta de costura” (referindo-se ao livro dele, não ao meu, repito,
como repetiria Santiago).
Bem, aí
está o que chamei de A Grande Decepção. E por que o autor precisa ser sempre
brilhante? Alguém acerta sempre nesse mundo de deus?
Agora, o
que faz um bom livro, isso não faço a menor ideia.