Uma trabalheira danada tem sido a catalogação
das cartas, contos, poemas, aforismos, esboços, ideias soltas, distribuídos em
cadernos de capa dura, cada um de uma cor, além de simples bilhetes rabiscados
em papel de guardanapo, contidos no que passei a chamar O baú de Suzete. Se o
leitor está lembrado, Dona Osvaldina entregou-me a correspondência da filha
dois anos após a morte dela, numa enorme caixa de papelão, e que pretendo um
dia publicar, nem tanto pelo valor literário dos escritos, muito mais pelo
inusitado das circunstâncias – uma cabeleireira que gostava de ler e escrever.
Me perdoem as cabeleireiras, mas até que – preconceito meu? – Suzete escreve
bem...
Não
estou bem certo se Suzete chegava a enviar as cartas que escrevia, especialmente
as endereçadas à amiga Débora. A correspondência é caudalosa, mas desconfio que
ela escrevia para si, pelo prazer de escrever, pelo exercício terapêutico de
escrever, embora ela não tivesse consciência disso, que a escrita pode ser
terapêutica. Ou tinha?
Reforça
esta hipótese o fato de que ela não tinha com quem conversar sobre literatura,
queixava-se da solidão da cabeleireira-leitora, no salão a conversa girava
invariavelmente sobre fofocas das revistas baratas ou sobre as novelas da televisão.
Todas as colegas sabiam da paixão de Suzete pela leitura, o que, em vez de
aproximá-las, afastava as meninas, algumas chegavam a chamá-la de besta,
metida, afetada, pedante.
Então
Suzete contava histórias para si mesma. É o que sugere a carta endereçada à
Débora, sem data, que agora transcrevo.
“Querida
Débora,
encontrei
naquele sebo aqui perto de casa um livrinho de poesia de uma tal de Adélia
Prado, publicado em 1976, sujinho coitado, as folhas amarelas, algumas
rabiscadas por mão de criança pequena, sabe aqueles traços incertos sem direção
ou sentido que só criança pequena sabe fazer?, pois é, comprei assim mesmo,
baratinho. Gostei do título: Bagagem. Gostei mais ainda dos poemas, e um deles
em particular tem me ajudado muito, tem me feito pensar. Mais pra frente copio ele
aqui para você ver se não tenho razão.
Como é que uma poesia pode ajudar a
gente? Eu nem desconfiava que podia, agora sei.
Vou lhe contar toda a história. Mês
passado apareceu-me no salão um rapaz pedindo corte de cabelo. De início, gentilíssimo
o moço. Viu meu livro sobre a bancada, com a capa voltada para baixo, como faço
sempre, para não chamar atenção, mas aí é que entra a curiosidade das pessoas,
ninguém resiste, pediu licença para vê-lo, concedi, naturalmente, elogiou-me a
escolha, Está gostando?, Estou, Também adorei, Ah! você gosta de ler?, É o que
mais gosto nessa vida, Então somos dois, só que eu gosto também de cortar
cabelo de homem.
Débora, esta minha última frase
deixou o rapaz desconcertado! Ficamos em silêncio, ele sentou-se, perguntei
como queria o corte, Escovinha, respondeu curto e grosso.
Depois de alguns minutos
perguntou-me Qual seu autor favorito? (Desconfio que quando as pessoas ficam
sem assunto acabam fazendo esta pergunta idiota. Como autor favorito? São
milhares de favoritos, não tem como responder. Devo começar por D. Quixote?
Enumerar os portugueses todos, Eça, Pessoa, Saramago, Cardoso Pires, José Luís
Peixoto, os africanos que migraram para Portugal, Mia Couto, os brasileiros
todos, a começar por José J. Veiga, que também só se encontra em sebos,
Machado, meu querido Drummond, a lista de favoritos é interminável. De onde se
conclui que quem faz uma pergunta dessa não tem o hábito da leitura. E isso me
irritou, dá para notar, Débora?) (Acho chique isso de escrever entre
parênteses... É para que você saiba, Débora, que significa apenas um pequeno
desvio, não é o centro da história, e volto a ela assim que fecho o parêntese.)
Também não respondi. Fiquei muda. O
rapaz não insistiu. Isso está me saindo um total desencontro, pensei. Para
aliviar o clima perguntei Qual o seu nome? Ricardo.
Débora, nem te conto, aí é que
aconteceu a tragédia! Tive vontade de morrer, sumir do mapa, virar fumaça,
explodir sem deixar vestígio. Assim que ele pronunciou o nome, como um raio,
sem pensar, perguntei Ricardo Terceiro?
Nada disso teria importância se o
moço não fosse feio, Débora, mas muito feio, feíssimo, horroroso, meio aleijado
das pernas, andava usando uma pequena muleta apoiada no antebraço direito, a
cara esburacada, um narigão enorme, estrábico ainda por cima, e o cabelo
escovinha dava-lhe um ar de pessoa pouco inteligente.
Ele não perdeu a pose, Débora, e
acrescentou, Gostei muito da peça, você gostou? Tentei corrigir, Shakespeare é
um dos meus favoritos... E ele não perdoou, Mas o homem era feio, não!?
Perdi a fala, Ricardo não disse mais
nada. Terminei o corte, ele perguntou quanto era, pagou, saiu sem se despedir.
Porra, Débora, juro que foi sem
querer.
E onde entra o poema da mineirinha
Adélia Prado nessa história?, você há de estar se perguntando. Pois você veja e
confira:
Amor feinho
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido
por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é
o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.
Lindo, não é! O resto é preconceito,
Débora. Tenho pensado muito nisso.
Da sempre
sua,
Suzete.